quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Flores bissexuais - Capítulo V, Meus escorpiões

          Eu estou com aids. Terceiro dia que acordo com essa frase a me torturar, cuspindo na minha cara todos os prazeres que tive. Meus sonhos eram perturbadores, Geni segurava uma criança ensanguentada - Toma, pega, o filho é teu -, Carlos me matava com seu pênis gigante. Eu, sempre acordando atormentado, os olhos ressecados por causa das lágrimas secas. Eu sempre tentava esquecer tudo, mas os pensamentos estavam impregnados em mim, eu não me via mais no espelho, só conseguia ver esses pensamentos. Sempre assim; quebrei todos os espelhos do apartamento, já não fazia a barba. Eu não saía mais de casa. Ninguém ligava, seria melhor assim, todos me esqueceriam, seria melhor assim. Pela terceira vez estou no banheiro, a faca ainda suja de margarina toca meu peito e acompanha a respiração. Duas horas na mesma posição, apesar do suor, a mão continua firme na mesma posição, a faca segura entre os dedos. A mente vazia me esvazia, me dá azia. Olhos famintos por cores. Batidas, batidas se confundem com o som de meu coração. Há alguém na porta, há alguém me chamando. A faca desliza, me alisa o peito, arranha o peito, o sangue forma uma imagem estranha no chão, como um pequeno sol vermelho. Sinto os olhos nas lágrimas, afogam-se, mas só o suor corre pelo meu rosto. As batidas frenéticas continuam, quase formam um ritmo, e eu preciso atender. Amanhã tento a morte novamente. Não visto calças, somente blusa e cueca. É o Carlos. Ele demora a abrir a boca, seus olhos estão tão conturbados quanto os meus. Eu já soube da doença. É, estou com aids. Sim, vim te buscar para te levar ao médico, agendei uma consulta. Tão rápido, você transou com ele também? A resposta é silenciosa, mais silenciosa que o silêncio, é fria e dolorosa, agressiva. Vista as calças. Já vestido estou esperando no hospital, durante a viagem não houve conversa e ainda não há. Nem olhares nem nada. Mas brigávamos, nos insultávamos por pense pensamento, nos xingávamos com silêncio. Teu pulmão não está muito bem, meu rapaz. Quando sai o resultado, doutor? Quinta-feira. Caso o resultado dê positivo, teremos de começar um tratamento imediatamente, e não te preocupes, não será assim tão doloroso. Sorrisos amarelos. Carlos me dá um tapa nas costas, amigável. Você fazia filmes pornôs? A Geni contou, não foi? Sim, eu fazia, era a única forma de viver, por incrível que pareça, eu me formei em Jornalismo, mas você sabe como é a vida, eu não tinha dinheiro para um aluguel, mas meu primo era produtor desse tipo de filmes, o salário não era nada mau, eram três mil e quinhentos por filme. E em algum desses filmes você teve que transar com Geni? Não, sempre era outro ator. Mas quando a vi no camarim... Ela é uma mulher inteligente, bonita e foi a primeira mulher a me beijar de verdade, me beijar com amor, nenhuma das outras mulheres que conheci queria amor. Ele então olhou para mim e, contra nossas vontades, nossos olhares se encontraram e o silêncio voltou a nos atormentar.
          Geni se recuperava muito bem, eu ainda não havia visto como ela estava desde o jarro de flores. A enfermeira disse que ela estava dormindo, nem saberia que eu estava ali. Geni estava cada vez mais linda, seus cabelos despenteados eram ainda mais charmosos, seus lábios sensuais quase imitavam todas as curvas de seu corpo. a barriga não crescera ainda e ela ainda era linda, mais linda do que nunca. Estava tentado a beijar aqueles doces lábios, antes que eu desse um passo, suas pálpebras se levantaram, seus olhos encheram a sala de brilho. Vocês está aqui? Isso não é mais a porra de um pesadelo? Não, querida, eu estou aqui. Querida? Você me engravidou, um bebê, aids, estamos todos com aids, infectados, por causa de você, seu desgraçado! O quê? O quê você esperava, idiota? Mas... Mas o quê? Então foi você quem me adoeceu, Geni. Ela não respondeu, os bipes ecoavam pelo quarto. Sim, eu acho que sim, há tempos sinto pequenas bolinhas soba pele e não me sinto bem, me sinto fraca, eu sempre estava meio resfriada, com algumas dores de cabeça. Sim, querido, eu quem te passei a doença. Eu chorei, chorei com minhas últimas lágrimas, chorei e chorei. Está chorando de quê, quer que eu me desculpe? Eu não sabia o que dizer, não sabia o que falar, não sabia o que fazer, não sabia o que pensar. Não havia palavra a ser dita, abracei-a, ela não protestou. Abracei somente, com um afeto triste, até adormecermos na mesma doença repugnante e nojenta, a doença que tanto atormenta.
          O senhor não pode ficar aqui. Era a enfermeira loira, a mesma que me atraia, agora era só mais um pedaço de carne podre, infectado pelo mundo, sujo. Ela abriu a janela para o sol voltar a nos perturbar, saí e fui para casa. A máquina de escrever estava escancarada, sentei-me, mas as palavras fugiam e tudo a ser dito tornava-se menos um pensamento vago despedaçado e jogado à lixeira. Parem, parem de gritar, estou cansado de tudo isso, me matem, estou aqui, mas parem de atrapalhar! Atrapalhar o quê? A infância desmentida, a adolescência imunda e rabiscada, destroçada e desgraçada, a velhice precoce e imoral, atrapalhar o quê? Vida de merda! Infância, infância, infância. A adolescência sem vida é a pior de todas as lembranças. Se é para morrer quer seja rápido, que chame a atenção, que faça barulho, que mude algo ao menos. Preciso de um revólver. Preciso me embebedar e transar.
          Estou no sexto copo. Seu João, você conhece alguém que vende armas? Falo entre pausas e soluços. Deixa disso, rapaz. O senhor sabe, a cidade está ficando perigosa, cada vez mais violenta, aposto como você tem sua pistola para imprevistos e emergências. Seu olhar me consome. Tem uma casinha amarela, número 41, daqui a cinco ruas. Diga que conhece o Kléber, eu só não aconselho que vá nessas condições. Ponho uma nota de vinte no balcão e dou as costas com um até mais embriagado. As ruas estão vazias, eu não estou tão inconsciente, ainda consigo pensar e caminhar, número 41, casa amarela. Boa noite, senhora. Eu preciso de um revólver de pequeno porte. Desculpe, mas não vendemos armas, o senhor deve ter se confundido. O Kléber que me encomendou essa arma. Suas pálpebras pesam. Entre então. Sei que o Kléber não te conhece, se ele quisesse algo, viria ele mesmo. Sorrio um sorriso puro de álcool, me erro. Então, o que você quer? O revólver mais barato e balas. Pago duzentos reais e volto para casa, sem cambalear, talvez a aids iniba o efeito do álcool.
          Agora é só puxar o gatilho, o cano já está enfiado em minha boca, posso senti-lo em minha garganta, ele arranha tudo que penso, agora é só puxar o gatilho e deixar a bala fazer todo o resto, o trabalho será mínimo. Ninguém sentirá falta de mim, ninguém, absolutamente ninguém. É fácil, basta puxar o a porra do gatilho. Basta puxar! Tudo estará feito, é isso então. Todas aquelas garotas, os beijos, as loiras, as morenas, os seios, as nádegas, os livros, os poemas, o bebê, Geni. Meu filho seria órfão de pai. Não, seu pai é e será Carlos. Basta puxar. Puxe! PUXE! Vamos lá. Vamos lá! Só você vai, tudo fica, tudo ficará para trás. Porra! Puxa a merda do gatilho. Merda! Ah! A vida tão cantada não tem nada mais que a morte, viver não é mais belo que morrer. O gatilho, droga. Puxa!
          Então, puxo o gatilho. 

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