sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sem ponto final

LUZES APAGADAS)

PERSONAGEM: Sou um personagem,(LUZES ACENDEM-SE) um mero personagem. Preso no palco, aprisionado entre as grades do teatro, servindo de qualquer , vivendo sem viver. Sou eu. Vivendo em tantos tempos, sem tempo para viver, não posso mais querer. O tempo, inexistente para mim, passa rápido, passa sem fim. Tento me libertar, mas sequer corpo tenho para andar ou amar. Minha dor só se passa apenas no corpo de um ator; minha dor só o ator sente. Na vontade de ser, vontade de ser, minha vontade de fazer, vontade única minha.
   
ATOR: Cala-te (GRITA DA PLATEIA E LEVANTA-SE, CAMINHA EM DIREÇÃO AO PALCO), pois tu és algo que inexiste, mas vives tão triste. E como podes viver se nada podes ler, nada podes tocar, nada podes falar, mas fala. Tu não tens vontade, sem direito a felicidade. Tu não podes querer, porque fora do palco, não tens viver.

PERSONAGEM: Tenho sim viver e querer, afinal agora falo com você, por livre vontade. De minha vida cuido eu, mas sempre aparecem atorezinhos como você, tentando me entender, querendo que eu entre em seus corpos. Pensam até que vão poder falar o que eu falo.

ATOR: E por acaso tens vontade própria para recusar?

PERSONAGEM: Não, não tenho.

ATOR: Então como podes dizer-me que há em você uma “vontade própria’?

PERSONAGEM: A vontade é minha; eu a entendo. Tu jamais entenderias, com tua crença superficial, não teria como entender este mal, pois és um desses atores sem técnica, que pensa que pode tudo só por já ter pisado em um palco.

ATOR: Ah! Não venha com sandices. Tu foste criado apenas para ser usado. Ou pensas que Beckett estava preocupado com teus sentimentos quando te criou? Pensas que Shakespeare se importava com tuas dores? Tu achas que Tchekhov preocupava-se com teus sofrimentos e infortúnios?

PERSONAGEM: Viu, só por que sabe os nomes de uns autores de tragédias e comédias, pensa que sabe de tudo.

ATOR: Ninguém se preocupa com vocês, todos os personagens são criados apenas para fazer as pessoas sentirem, mas eles próprios não sentem, não existem ou pensam. E por isso mesmo existem atores, que existem para sentir o que vocês são incapazes de sentir.

PERSONAGEM: Não, você está errado, você não sabe de nada. Você pensa que eu não sofro, tendo que estar aqui todos os dias, Esperando Godot entrar por aquela porta, sabendo que ele não virá. Você pensa que eu não sofro pela morte de meu pai, tendo que escolher, sendo obrigado a tornar-me rei da Dinamarca. Você pensa que eu me divirto com as Bacantes?

ATOR: Basta de dar exemplos inúteis. Isto aqui não é uma tragicomédia, é apenas um esquete. E tu não és nada.

PERSONAGEM: Não, sou um ser pensante.

ATOR: És lerdo como um elefante.

PERSONAGEM: A partir daqui discordo a continuar com esta discussão boba, conversando com um ator tão tolo.

ATOR: Tolo, eu? Há alguém aqui que me considere um tolo? (PARA A PLATEIA)

PERSONAGEM: Muitos aqui pensam que tu és mesmo tolo, outros não, pois também o são. Mas a maioria está apenas introvertida a dizer a verdade.

ATOR: É mentira sua. (VIRA-SE PARA ALGUÉM DA PLATEIA) Tu, o que pensas de mim? Sou um tolo assim? (APROXIMA-SE) Não fales a verdade, por favor.

PERSONAGEM : Fale a verdade sim, somente o que for verdadeiro.

ATOR: Diga-me o que és verdadeiro então, alma impura. (ENTREOLHAM-SE) Não há verdades, não há.

PERSONAGEM: Há verdades sim, e volto a dizer que a verdade é esta: atores me usam, como uma roupa.

ATOR: Sim, te usam e te desgastam. E um pedaço teu fica naquele que te usa, e já perdeste milhares de pedaços. Mas concordo em dizer que cada pedaço teu vive, e vive bem, dentro daqueles que te usaram. E por esse motivo restou pouco de ti para que eu pudesse usar.

PERSONAGEM: Então é esse o motivo, o significado deste discurso, desta peça, é apenas para entender-me e deixar que eu entre? Tu queres me usar? Por que tudo isso, por que não foste direto ao assunto?

ATOR: (AJOELHA-SE) Perdoe-me. Eu imploro pelo teu perdão. Desculpe do que de minha boca saiu que te feriu; não foi de coração, juro. Perdão, por favor, perdão.

PERSONAGEM: Perdoo-te, mas apenas se disseres que não sou mero acaso.

ATOR: Não és.

PERSONAGEM: Digas também que eu não sou como uma roupa que se desgasta ao ser usada.

ATOR: Não, não és. Não és roupa, afinal quem é como roupa é o ator que se deixa ser usado pelo personagem. Já o personagem apenas toma pelo dever de infiltrar-se no corpo daquele que se deixa absorver pelo texto.

PERSONAGEM: Sim, o ator é que se deixa ser usado.

ATOR: E o personagem apenas é amado.

PERSONAGEM: Adorado.

ATOR: Agora sei como se sentiu quando te bombardeei com aquelas amargas palavras.

PERSONAGEM: Eu te perdoo.

ATOR: Perdoas?

PERSONAGEM: Sim.

ATOR: Demonstras que tens bom coração.

PERSONAGEM: Se eu ao menos tivesse um.

ATOR: É... tens razão.

PERSONAGEM: Sim, agora sabes, medíocre ator, sabes que não é personagem ou ator, mas os dois, ambos são um só, um só.

ATOR: Sim um só corpo, formado como em uma dança, uma dança única. (SENTAM-SE NA BEIRA DO PALCO, POR UM TEMPO OLHAM PARA O PÚBLICO) Tudo isso parece um sonho.

PERSONAGEM: Sonho?

ATOR: Mas e se tudo for um sonho? (LEVANTA-SE) Eu não acredito, eu estou sonhando, todo esse tempo estive sonhando, só pode ser isso; você é um ser onírico, é claro: o que aconteceu hoje é um fruto de um sonho. (DESCE DO PALCO) Alguém aí, por favor, joga água em mim, alguém me acorda, por favor.

PERSONAGEM: Calma, você só está delirando.

ATOR: Não, não. Eu acreditei em tudo, acreditei neste sonho tolo. Eu não posso aguentar. Eu acreditei em você (APONTA PARA A PERSONAGEM), e em vocês (APONTA PARA A PLATEIA), eu cheguei a acreditar que todos vocês aí eram de verdade. Eu acreditei em tudo. Achei verdade esta mentira. Não pode ser. NÃO.

PERSONAGEM: (PÕE AS MÃOS NO ROSTO DO ATOR) Tudo aqui é verdade, por mais que pareça surreal, tudo aqui é real (DÁ UM TAPA NO ROSTO DO ATOR) Sentiste a realidade?

ATOR: Não, não tente,não acreditarei em você, não tente me convencer, afinal eu sei que a verdade pode estar em qualquer lugar, mas aqui ela não está

PERSONAGEM: Acredite.

ATOR: NÃO.

PERSONAGEM: E mesmo que tudo seja um sonho, quando acordar ainda estará sonhando, pois na vida não há nada real. Ou tu pensas que a vida nos traz coisas reais? A vida é um sonho, onde quem acorda não volta a sonhar. Por isso é melhor continuar sonhando, sonhando e sonhando, mesmo que o sonho não seja seu. Assim é o viver, assim é você. Então não queiras acordar, continue aproveitando o sonho. Não pare. Noigandres.

ATOR: Sim, sim. Tens razão: NOIGANDRES,

PERSONAGEM: Viva, viva.

ATOR: Noigandres.

OS DOIS: NOIGANDRES.

ATOR: Viver, vamos viver, escrever, vamos ser, ganhar, perder, cantar, amar.

PERSONAGEM: VIVER!

SONHADOR 1: Mas o que é isso aqui? Não se pode mais sonhar em paz. Saiam daqui e me deixem sonhar, vão, vão embora. Não se pode mais sonhar em paz.

SONHADOR 2: E você, o que está fazendo em meu sonho? Até em sonhos existem penetras, vai, sai daqui e me deixa sonhar. Pois eu quero sonhar, quero amar, quero atuar e viver, sem ponto final


FIM