sábado, 30 de junho de 2012

Eu quero me ter de volta,
me devolva a mim mesmo.
Eu preciso de mim!
Me devolva ao lugar onde me encontraste,
me devolva ao meu coração

Outro final

        Ela entra, suspira.
        - E aí? Como foi o filme? - ele pergunta com um sorriso daqueles que sempre sorria.
        - Foi ótimo - outro suspiro. Começa com a protagonista dizendo: "Vem, meu menino vadio", então surge a música ao fundo: "Vem, sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia você não vai crescer".
        Ele somente assiste.
        - Até então, ela cantava frente a um espelho e de repente, não mais que de repente, luzes se acendem e ela está em um palco. A música continua e a cena muda. Ela aparece de frente a um homem - ele aproxima o rosto ao dela -, os lábios quase se tocam e ela para e diz: "Não posso fazer isso".
        - Por que não?
        - "Eu não sou tua", e quando ela diz isso, ele se vira e sussurra...
        - Mas eu sou teu...
        - "Você não entende? Se ele descobrir, o que será de nós?"
        Silêncio. Ela continua:
        - Então ele reponde...
        - Eu seria feliz.
        - E começam a dançar.
        Começam a dançar.
        - No filme ele é bonito como Alain Delon e ela... mais parece Dulce a Veiga.
        - Eu te amo.
        - No filme ele diz isso em inglês.
        - Eu não sei falar inglês.
        Eles se abraçam.
        - "Eu faço sucesso neste cabaré, se ele descobre que eu me apaixonei..."
        - Então vamos fugir!
        - "Ele me encontraria". Então os dois se separam e o filme passa a narrar a história de cada um separadamente. E depois de algumas cenas, alguns minutos, e coisa e tal e tal e coisa.
        - Eles se reencontram com brilhos nos olhos.
        - Exatamente. Ela descobre que ele não é homem.
        - O quê?
        - Brincadeira... Ela mostra o diário e diz: "Ontem ele o leu, já sabe do nosso caso".
        - Mas não aconteceu nada entre nós.
        - "Aconteceu: nos apaixonamos sem querer. E acho melhor você ir embora, a gente nunca mais vai se reencontrar. Ele disse que iria te matar"
        Choro. Ele então retira um revólver do bolso.
        - O quê é isso?
        - Já que não podemos ficar juntos, não quero você por aí, nem eu por aqui.
        - E nesse momento ele aponta a arma em direção à testa dela - ele aponta o revólver - e aproxima-se - dá dois passos - puxa o gatilho.
        Ele puxa o gatilho.
        - Mas não há balas.
        - Ela abre a mão e mostra as duas balas.
        - Por que você fez isso?
        - "Por amor, nós não podemos morrer, meu amor". Ela puxa a arma e a joga no chão. Ele tentar pegar, mas ela o empurra. Começa um tipo de luta coreografada, uma dança de amor e raiva, beijos e tapas.
        Eles passam a brigar pelo revólver. Então caem. Próximos, os rostos transpiram. Levantam-se.
        - Ela tenta resistir, mas não consegue.
        Eles se beijam.
        - Nesse momento o dono do cabaré chega, apanha a arma e mata os dois.
        - Ainda bem que nesta história só há dois personagens. 

domingo, 24 de junho de 2012

Rota diária

      Em cada parada subiam mais e mais pessoas e ele seguia - cada vez mais lotado. O motorista já nem discernia o que era gente do que não era, não havia espaço para ar ali dentro, mas sempre havia um passageiro a mais.
     As pessoas nem percebiam que eram comprimidas umas contra as outras, sentiam apenas o calor infernal de sol, o calor carnal de gente. A única música era a sinfonia das peças, regidas pelo motor ruidoso, motivador energético da nossa dança intercelular. Já não podia se falar em um grupo de pessoas grudadas, mas em um corpo só, quase sem vida, cheirando ao suor mais puro e urbano.
     Cada freio era o bastante para sentir a própria pele de outras peles.
      - O ônibus seguia - sempre com um a mais do que já havia.
      E o mundo diminuía lá fora, cá dentro tudo crescia. Só quando tentei respirar foi que percebi a presença não de dezenas de humanos, mas mais que centenas: eram milhões de homens a se esfregar em milhões de mulheres. Tudo lá de fora viera para cá, era somente o ônibus agora, não se via o além das janelas.
     Já podia sentir-se os braços em outras pernas, os olhos a verem outras coisas que não as coisas a serem vistas.
     Daí a pouco os vivos voltaram a viver:
     Começou uma gritaria cáustica, um roçar de coisas, iniciaram-se as apalpadelas sem censura. Desconhecia-se a desculpa ou a educação, o principal mandamento era: Estar ali e dançar da mesma dança matinal e passageira.
      Aquele caminho parecia já não ter fim, imaginava que o ônibus estivesse num cilo infinito, rodando por diferentes paisagens.
      Tudo se misturava a cada segundo.
      Não me sentia a mim, sentia-me como mais uma parte dum único corpo - formado por tantos outros corpos. Até tentava desfazer-me dali, mas os comandos de mim não eram meus.
       E cada um tentava, quase inutilmente, sustentar aquela situação, cada um tentava sobreviver por conta própria, dando vida ao outro. Era imperceptível, mas ajuda era justamente o câncer daquela máquina. Cada um morria sem saber, dentro daquele caixão morto.
       Foi na última freada: todos perceberam do que faziam parte e seguiram seus caminhos - que caminhos? -, seguiam outros caminhos - que caminhos?.
        Pararam e assinaram o atestado.
        Então, prostrados sobre aquela terrível terra metálica, cuspimos o que ainda restava de sangue enferrujado. Nesse momento vi cada parafuso se desfazer e fazer o mundo desmoronar.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Polissíndeto

Sempre contigo, me vejo um outro eu,
sempre me perdendo no teu esquema
confuso e intrépido.
Sempre adicionando conjunções
que no completem,
essas próprias conjunções que coordenam
e ordenham nossas vontades
para além dos próprios desejos
que um dia não sentíamos

domingo, 17 de junho de 2012

Viajor

No mar de areia foi que me engasguei
com o teu sorriso
e me lembrei do teu beijo
tão pérfido,
o beijo que me fez não ser eu quem te beijava.
E no teu corpo continuei a viajar
entre as montanhas de cabelos
tão sedutores e enganadores
quanto a primeira dor de meus olhos
ao te ver.
Dos teus olhos, da tua pele
minha pele se queimou
e gravou na retina dos teus olhos
a mesma imagem dos meus óculos.
Sempre na vida há ainda tua lembrança,
há ainda os resquícios da nossa esperança.
Ainda no teu seio há os seixos de paixão
e ainda em mim há metade de um coração

sábado, 9 de junho de 2012

Saudades de saudades

Parece que foram ainda ontem
esses dias que estão em mim,
os dias eternos que agora são nunca.
Parece que ainda ontem eu os vivia -
aquelas manhãs e as tardes dos sábados
são do que eu tenho mais saudade.
(aqueles sorrisos ou abraços,
aquela falta de tudo - até de palavras -,
que era o bastante para alegrar-nos
enquanto nos olhávamos por amigos).
Até me pergunto se amanhã terei saudades de hoje
como tenho saudades de ontem.
Mas saudades de saudades
são impossíveis
pelo simples fato de não haver lembranças.
Então eu choro
                       (calado e sem lágrimas)
tentando não lembrar
e não criar lembranças ou esperanças
de um dia voltar

domingo, 3 de junho de 2012

Fragmentos do diário de um ex-ator

       Quando eu fico sozinho, sinto o cheiro de um perfume que não é meu, sinto um calor que não é o meu, como se sentisse outro alguém. E fica quase tudo estranho, quase nada faz sentido, quase. E é por isso que eu falo quando estou sozinho, porque sei que alguém me escuta, quase me sente. Há alguém ali ao meu lado, a me olhar, a me escutar e, talvez, a me amar. E essa é a melhor companhia de todas, esse quase outro eu, quase duplo de mim. Digo quase, pois não é meu reflexo que sinto, é outro. Outro por quem me apaixonei, conversei, amei, amo, falo, escuto. Outro, que alguns chamam de nada. Mas eu posso chamar de mim, de tudo.

      Um dia tive um sonho: Eu estava tomando banho e no momento de fechar o chuveiro, quanto mais eu girava a torneira, mais água saía, então eu girava e mais água. Já desesperado eu chutava a torneira, gritava, pedia socorro ao nada. A água já estava na altura de meu pescoço, o mundo todo estava encharcado, todos me culpavam, todos gritavam comigo. Foi quando eu desisti e parei, só então percebi que toda aquela água não era do chuveiro, mas minha - eram lágrimas.

      Eu sempre quis ser imortal, desde criança queria não morrer. E diziam que a esperança é a última que morre, por isso a matei. E então vi o quanto eu precisava dela para viver - e só se vive numa vida que acabará, mas agora a minha não acaba e já não vivo. Até queria ter esperança de um dia morrer, mas eu a matei.

      Não sei se foi meu olfato que mudou, minha visão que se distorceu ou meu paladar que desapareceu, mas agora é tudo tão virtual, meu tato é tão natural, sem falar da minha audição que, por escutar o tudo, não serve pra nada.

      E falo peremptoriamente por culpa do mundo, da sensação de ter emoção e escutar o coração, o pulmão. Ver o clarão da escuridão opaca, gigante, rimada. Mas meus óculos estão manchados de mundo - outro mundo de outra realidade -, que me faz não ver este mundo pertencente ao real.

     Sem movimento, sem fala, sem nada é que o teatro nasce, cresce e acontece. Nesses verbos que eu existo. E nas conjunções me diluo com as preposições, gritarias, risadas, violências, choros, caras, desanimadas, obrigadas a nascer, viver e morrer.

     Mas eu estou sem ideias, não tenho mais o que falar ou pensar, nem sei de nada, nem sei as funções dos pontos, não entendo as figuras de linguagem, não conheço preposições. A língua eu não conheço, mas eu a beijo, a uso, a estupro.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Guitarra frenética

"Eu preciso voltar para casa", preciso retornar ao que era meu. E todos esses ossos que me compõem parecem não ser nada, são traços desprezíveis e indesejados na tela a que chamamos de mundo. E é só mais isso que me faz sentir um pouco humano e muito inexistente. É a falta de calor, o desejo da carne que me preserva. O não entender faz parte do entendimento de mim, e eu próprio esqueço de pensar novos pensamentos. Os pensamentos que já pensei são preservados pelo vento, são levados pela maré do existir. "Volte para casa", minha voz grita para fora do espelho. O dedo está no gatilho, o corpo quer partir, a alma quer ficar. Eu me calo. "Aperte o gatilho", o gatilho pesa como nunca pensei. "Atire, aperte o gatilho, esse é o seu fim, já acabou", a coragem eu não tenho, a loucura transborda. Procuro, por todos os lados, algo para eu me segurar, não há nada, seguro a mim mesmo e caio. Caio ao infinito, não sinto nada que deveria sentir, não ouço meus próprios gritos, não sinto minha própria pele. Já não existo, só caio, meu sangue já não corre. A guitarra frenética não para de tocar a mesma música inevitável, como uma guerra eu luto contra tudo que fui, mato tudo que serei e me deixo. Então fecho os olhos para abri-los em um outro lugar quando acordar.
Quando acordo é tarde demais, já caí tudo o que tinha que cair.