domingo, 24 de junho de 2012

Rota diária

      Em cada parada subiam mais e mais pessoas e ele seguia - cada vez mais lotado. O motorista já nem discernia o que era gente do que não era, não havia espaço para ar ali dentro, mas sempre havia um passageiro a mais.
     As pessoas nem percebiam que eram comprimidas umas contra as outras, sentiam apenas o calor infernal de sol, o calor carnal de gente. A única música era a sinfonia das peças, regidas pelo motor ruidoso, motivador energético da nossa dança intercelular. Já não podia se falar em um grupo de pessoas grudadas, mas em um corpo só, quase sem vida, cheirando ao suor mais puro e urbano.
     Cada freio era o bastante para sentir a própria pele de outras peles.
      - O ônibus seguia - sempre com um a mais do que já havia.
      E o mundo diminuía lá fora, cá dentro tudo crescia. Só quando tentei respirar foi que percebi a presença não de dezenas de humanos, mas mais que centenas: eram milhões de homens a se esfregar em milhões de mulheres. Tudo lá de fora viera para cá, era somente o ônibus agora, não se via o além das janelas.
     Já podia sentir-se os braços em outras pernas, os olhos a verem outras coisas que não as coisas a serem vistas.
     Daí a pouco os vivos voltaram a viver:
     Começou uma gritaria cáustica, um roçar de coisas, iniciaram-se as apalpadelas sem censura. Desconhecia-se a desculpa ou a educação, o principal mandamento era: Estar ali e dançar da mesma dança matinal e passageira.
      Aquele caminho parecia já não ter fim, imaginava que o ônibus estivesse num cilo infinito, rodando por diferentes paisagens.
      Tudo se misturava a cada segundo.
      Não me sentia a mim, sentia-me como mais uma parte dum único corpo - formado por tantos outros corpos. Até tentava desfazer-me dali, mas os comandos de mim não eram meus.
       E cada um tentava, quase inutilmente, sustentar aquela situação, cada um tentava sobreviver por conta própria, dando vida ao outro. Era imperceptível, mas ajuda era justamente o câncer daquela máquina. Cada um morria sem saber, dentro daquele caixão morto.
       Foi na última freada: todos perceberam do que faziam parte e seguiram seus caminhos - que caminhos? -, seguiam outros caminhos - que caminhos?.
        Pararam e assinaram o atestado.
        Então, prostrados sobre aquela terrível terra metálica, cuspimos o que ainda restava de sangue enferrujado. Nesse momento vi cada parafuso se desfazer e fazer o mundo desmoronar.

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