terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A poluição poética - Capítulo VI, Meus escorpiões

          Tudo trevas, eu acordo, havia desmaiado de tamanha exaustão psicológica, o revólver falhara. Mesmo depois de abrir os olhos eu permaneço deitado naquele chão imundo do banheiro, rodeado pelos fluidos mais fétidos e repugnantes, partes de mim. Passam-se duas horas e meu olhar continua fixo no teto horrível e macabro. Ouço uma voz gritando frases de raiva, de ódio, de palavras inteligíveis. A voz intensificava-se cada vez mais, mais grave, mais próxima, mais - já não é a minha consciência, é algo fora de mim-, é a voz de Carlos. Carlos grita, me chama. Devo abrir a porta para ele, meu corpo continua grudado àquele ambiente insólito. Entendo três palavras apenas, Geni recebeu alta. É o  bastante para me desagarrar daquele estado. A porta, à porta Carlos está eufórico, seu sorriso, seus olhos, todo seu corpo brilha, ele repete: Geni recebeu alta. E antes que perceba, ele já está na cozinha, bebendo água, parece se acalmar. Que alívio, agora finalmente eu e Geni poderemos fazer a merda daquela viagem em paz, Geni não corre mais perigo e o bebê está ótimo. Então, impensadamente, ele me abraça e me beija a bochecha. O ato me traz sentimentos indesejados de ódio, de amargor, penso na Geni que ele me roubou, sinto uma fúria ardente, uma fúria crescente, penso no respeito que ele me tirou, na vida que ele me destruiu. Quase sem querer, como que para me sustentar em mim mesmo, minha mão pousa sobre a mesa, coincidentemente, sobre uma faca e a faca, involuntariamente, se levanta, se ergue, tudo pausa num quadro fotografado, perfeito. Carlos fala: E é amor que há, é..., a última palavra é sugada pelo corte penetrante, furioso. A faca despenca num arco perfeito até perfurar as costas dele, a faca o rasga, sinto ela encostar na coluna dele, eu empurro ainda mais a faca, puxo a faca, a faca dança dentro do corpo de Carlos, o sangue samba, respinga em todas as direções, eu sinto o calor de Carlos em meus braços, sinto o calor do sangue em minhas mãos, sinto o sangue a lavá-las, meu suor se confunde com o sangue, sangue que brinca no chão, rasteja sobre a faca. Ele continua abraçado a mim, formamos agora um monumento de mármore, a palavra solta ainda está pendurada na boca do defunto, quase vivo, quase morto, o espasmo tardio. E solto o corpo de mim, o corpo cai, banha-se na própria vida que é agora morte, vinho. Não penso em absolutamente nada por um curto intervalo de tempo, não penso, não existo, até o som amedrontante de aço sanguinário ecoar pela casa e me fazer perceber toda a merda. O corpo de Carlos, o sorriso mal-formado, os braços formam um abraço invisível, as pernas curvam-se, quase ajoelhadas no ar, os olhos estão fixos no teto, o mesmo teto. Cedo à queda e, encolhido em mim mesmo, observo, agora, além de suor e sangue, há as lágrimas. Não sei o que fazer, não sei como fazer. Eu o matei, matei o amor de meu amor, matei meu último amor. Eu realmente o amava, como nunca amei a nenhum homem, e por isso o odiava. Eu não deveria amá-lo tanto assim. E agora ele não existe, preciso fugir, fugir de mim mesmo. O que fazer com a porra do corpo? O que fazer comigo? O que fazer com tudo? O que fazer? Eu grito, esmurro chão, parede. Me esmurro, me sussurro palavras impenetráveis, palavras irreconhecíveis. Sou um assassino, eu o matei, caralho! Porra! Eu o matei, porra! Fujo, fujo. Fujo do corpo, do sangue, do cheiro, do teto. Tento fugir de mim, fugir do assassino. Corro, corro o quanto posso. Corro. Carro. Carros. Ainda estou banhado em sangue - batizado pela morte -, as mãos pintadas de vermelho, com o cheiro invariável de carne. Na rua as pessoas se assustam, se amedrontam, correm para longe de mim, algumas gritam, choram, desmaiam, alguns homens me perseguem. Corro, corro. É a polícia atrás de mim, droga, eu tenho que correr, tenho que correr. Mas havia uma pedra no meio do caminho, havia eu no meio do caminho. Tropeço no ar como se ouvisse música, tropeço em mim e caio, caio ao chão. Caio. Rolo. Eles me agarram, os policiais me agarram, me algemam, não resisto, não penso. Eu matei uma pessoa. Eu matei Carlos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente, critique: