domingo, 23 de setembro de 2012

655321 - Vida dum ato só

Como se fosse tudo lembrança, eu tento reviver essas partes despedaçadas de um mesmo sonho, mas só tento. Porque as partes não parecem ter sentido ou elos, mas são de um mesmo único, sei que são. Eu morria toda semana, sempre no mesmo dia, no mesmo horário, sempre na mesma quarta-feira, sempre a mesma morte. E agora sou apenas um espectro do nada, um inútil a mais, algo que não vive, só existe. Algo que só existe nessa solidão do palco, essa solidão tão companheira e amiga. 
Não sei o que foi que me deu, só lembro do eco daqueles passos matinais que talvez nunca ouvi, esqueci do resto. Meu nome é como uma epigrama esquecido num canto, e por mais que eu force, ele não vem. Então tento falar pausadamente, quero que todos entendam, mas falo peremptoriamente – por causa do mundo, da sensação de ter emoção. Mas é sem movimento, sem fala, sem nada é que o teatro nasce, cresce e acontece.
Mas a primeira lembrança é a lembrança de amanhã, mesmo hoje sendo o dia antes de anteontem, posso ver aquela imagem distorcida e medrosa, aquele guarda-chuva vermelho. Não chovia, mas ele era como uma proteção do que poderia me atacar, os tantos demônios que sempre me atormentaram. Eu poderia falar de Deus, mas falo do inferno. Deus é um pouco demais, é pesado pra mim. Não sei se foi meu olfato que mudou, minha visão que distorceu o meu paladar, mas agora é tudo tão virtual, meu tato é tão natural, sem falar da audição, que, por escutar o tudo, não serve para nada. E meio esfumaçada há aquela imagem estranha – não sei se sou eu outra personagem qualquer. Isso agora já não tem importância, é tudo a mesma coisa. E assim foi que começou a história, confusa e sem nexo, até porque não fui eu quem criou a história, eu só conto, não faço, quem me dera fosse eu quem criou essa história, quem me dera eu fosse o escritor da minha vida... Eu só observo esses pontos vagos cheios de uma infinidade de possibilidades incertas, isso no tempo que havia tempo, pois agora o tempo parou e não há mais espaços, apenas alvitres recortados e rachados sob a memória. Então aquela personagem se pões a caminhar um início duma saga, uma longa viagem, dá os primeiros passos, aprende falar, conhece o primeiro amor... Ah!, Aquele amor. Era ela bela, perfeita, nós nos amávamos pra valer. Eu não sabia se era um amor inventado ou criado ou se realmente existia. Eu não sabia de nada, o importante é que era amor, mesmo que ela fosse somente ilusão. E nós brincávamos, dançávamos, cantávamos desafinadamente, mas cantávamos, olhávamos para tudo, apaixonados. Tudo isso foi rápido até que acordasse e percebesse ser aquilo só mais um sonho, mais uma história qualquer, uma história que me usou. Afinal é isso que a arte fez e faz comigo: Me usa. Eu mesmo não sei o que faço agora, só obedeço, só obedeço. É essa a arte que fala de amor, de sexo, guerra, violência, felicidade... E me faz sofrer, chorar. Até me fazia querer morrer quando eu ainda era vivo. Agora eu peço para ela me fazer viver. Ela não me escuta mais, não me usa mais, eu já não sirvo. “Não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada”, Fernando Pessoa! Eu sou só uma peça que sobrou, invisível e insensível, só existe aí, na cabeça de vocês. Se não fossem esses seus cérebros maravilhosos, seus pensamentos, eu não estaria aqui, porque ninguém pensaria em mim, ninguém me veria assim.Mas em mim cabem todos os sonhos do mundo, “meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”, Caetano! E se olho para o céu a noite não é para apreciar a lua ou as estrelas, mas para olhar para mim, tentar me entender, entender cada coisa que compõe todas as coisas.
É só mais um vértice da crônica rápida de minha... (não diria vida, porque aquilo não chamo de vida), diria busca. Sim, busca pelo nada, que perdi tanta coisa no inútil, naquele negócio de tentar fazer e ser, mas só saía o que não sei dizer nem escrever, o que só sei sentir. E eu sentia dores e sofrimentos, sentia tudo dos choros que ouvi de minha mãe, de meu pai, da dúvida de Deus, nas ruas e nos quartos, da dúvida de tudo, da falta de carinho, falta de amor. As guerras, os tiros, as drogas, as traições, o ódio; por isso de tudo acabei preferindo o nada e fui buscar a rosa, rosa perfeita nas próprias imperfeições, rosa onírica. E no caminho de encontrar algo mais e além encontrei a tristeza, conheci o que é tristeza de verdade, úmida e dolorosa, neste vazio chato, sem adjetivos, sem palavras. Eu pelo menos não sabia a ordem, se eram três, dois ou nada. Eu ia pensando e caminhando, quando cheguei lá e vi a rosa, a rosa de Alencar, de Drummond, de Zé Celso, quase chorei, mas não consegui chorar, tentei rir e só ouvi um grunhido. Foi quando o mundo me apareceu diante de minhas lentes e pude ver toda a multidão a me olhar, todos a me reprovar. Estendi o braço até a rosa, desentendi, quase a segurei. Então me senti caindo – do muito ao pouco –, permaneci com o braço estendido, a mão suada e trêmula a se erguer para o horizonte, pedindo socorro. Mas ninguém fazia nada, meus músculos doíam enquanto eu via cada um rir de mim ou chorar, mas não seguravam minha mão. E eu gritava, xingava. “Segura a minha mão, segura minha mão. Por favor! É só segurar. É só...”, então tudo escureceu, tudo desapareceu. E da escuridão me veio essa luz impiedosa que brota dos olhos de cada um de vocês e me obriga a confessar o que me aconteceu, me obriga a viver, mesmo que por um instante, na morte a vida que não lembro e depois voltar a morrer entre as vírgulas. Voltar para o mesmo lugar em que me encontrei e esqueci, o mesmo lugar que quis tantas vezes estar, o lugar de mim manchado com o beijo ensolarado e melado do vento imprevisível e incontrolável da vida. E justamente nessa parte me perguntam qual o porquê de viver, mas não quero, não posso, não respondo, só creio, recrio, faço acontecer a vida desvivida e personificada da máscara que criei na tentativa de dizer, ser, sempre no momento de não morrer. Dizem que existem pessoas que não merecem nem a si mesmas, acho que sou uma dessas pessoas
Mas cadê a poesia nessas horas, cadê teu mundo, Sofia? Está aqui! Sim, está aqui. Como? As palavras são fortes demais, elas me torturam, elas agora mostram... A rosa está aqui, está dentro de mim, a rosa nunca esteve distante, eu é que não percebi. [GARGALHA]. A rosa está aqui! Eu precisei morrer para perceber, mas agora vou voltar para o meu lugar. Vou renascer, reviver, reescrever a vida, vou ser feliz como só eu. Poderei voltar a sorrir de verdade, voltar a escutar o próprio grito. Poderei me ver no espelho, chorar para mim, correr e sentir o peito bater! Vou escutar meu coração novamente, escutar me chamarem pelo nome, abraçar e sentir o calor, suar. Poderei voltar a viver e repetir os mesmo verbos de sempre, tão novos e repetidos: sonhar, esboçar, caminhar, ganhar, perder, comer, depois correr, atuar, desenhar, parar, poder. Eu vou poder tanta coisa, vou fazer tanta coisa que mal posso esperar para voltar e nascer. Voltar, viver!
   

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