As trombetas infernais soaram às três da madrugada,
estava em chamas a vermelha enseada
que corria ao meu redor
e me possuía num olhar só.
Os raios de sol inexistentes
iluminavam aquela nossa pistola no chão
e dançavam uma valsa tristemente
que me lembrava a morte de nosso duplo coração.
Parece-me que foi ainda ontem
quando esbarrei em teu corpo perfeito
e cruzei meu olhar com o teu
e me fiz perdido entre a multidão
e te queimei o coração
com o beijo inesperado,
o abraço destroçado,
o mundo apressado.
E te levei para os lugares meus
tão desconhecidos e esquecidos,
te mostrei os lugares em que vivi
e só eu conhecia,
só eu vivia.
Te fiz minha amante inseparável,
te quis teu semblante indeflagrável.
Então me perdi entre o quarto escuro,
me joguei em teus braços,
te guardei as mil juras de amor,
te envolvi tua pele em minha pele,
desencontrei o que restava de mim
em teu corpo,
me deixei cair sob os lençóis,
te deixei sentir teus tantos sóis
na cama enluarada,
na nossa cama embotada
de alegria e felicidade,
alegria e felicidade da paixão interminável,
do laço entre nossos corações, inseparável,
dos nossos sentimentos inigualáveis,
das nossas promessas inquebráveis.
E passeamos ao mar,
passamos ao céu,
encontramos nosso lar.
E guardamos, resguardamos.
Fomos nós os mesmos que permeamos
a correr tantos anos,
a viver sob nossos panos,
a saber nossa ciência imprópria,
a querer nosso desejo sem história,
a ser nossa impaciência envoltória,
a ler nossos poemas apaixonantes,
nossas vontades distantes
que jazem nessa caverna verdejante.
O portão enferrujado já não abre mais,
a porta já não suporta tanta paz,
então te peço que me ame,
que me apaixone,
que não desligue o telefone.
Te peço tantos outros pedidos
nunca respondidos,
te vivo nas cenas e nos textos jamais vividos.
Eu te sou nosso incomparável ser
que me pede para morrer.
Então tento, tanto tento, segurar a corda,
segurar o último fio que nos une,
suportar o peso descomunal e insuportável
que me asfixia,
aguentar o cordão que me envolve a garganta
e sufoca.
E eu tento, eu permaneço e continuo,
tentando e tentando.
Mas és tu mesma quem me acordas e cortas a última corda, me cortas em mil pedaços.
Nada precisou dizer, nada precisou fazer,
fiquei apenas a observar aquela traição,
a destruição que tanto planejaste
com aquele outro homem
(tão mais belo e forte),
aquele mesmo homem que me vingaste.
Eu te perdoei, eu gritei,
me gritei,
te gritei
para que voltasses
e me perdoasses meus pecados,
me perdoasses meu recados de amor,
me perdoasses minha paixão,
me perdoasses meu perdão.
Meus olhos me afogaram em lágrimas então,
meus lábios me murmuraram
aquelas tuas frases inesquecíveis
e me lembraram meus ferimentos irreversíveis.
Me permiti correr,
me perder entre as rochas sujas e impuras
na mata que fora nosso palco,
que fora floresta bela
e era agora pântano, enlameado e destroçado.
Eu te via com teu novo amor por todos cantos
e já me perdoara,
tentava não mais amar,
parar de me apaixonar
e aquilo crescia dentro de mim,
crescia sem nunca ter fim.
Fugi,
fugi para um lugar longe de mim,
longe de ti
e fui viver na estação do sol,
fui viver no último terminal,
fui morar nesse próspero lamaçal.
Tudo sem nada, sem graça, sem vida,
muito pouco.
Tudo até te reencontrar,
reencontrar-te naquele meu mesmo pantanal,
tu sofreras como sofri
com outra traição
sem perdão e sem razão,
traição daquele teu homem.
Voltaste para os braços meus,
mas sem amor,
afundada em toda tua dor,
ali estavas, inocente e descrente,
frágil e indefesa.
Colado em corpo teu
te beijei, te amassei a roupa rasgada, suada e desencontrada.
Te voltei meus olhos reluzentes de paixão,
novamente te ofereci meu coração,
tu aceitaste e o esmagaste num teu desgaste entre teus dedos,
disseste querer ter meu coração
no mesmo lugar em que estava o teu - no mesmo estado -,
disseste querer me ser
assim como foras tu
e me destruíste então,
me deixaste ruir
enquanto eu só podia ouvir
teus risos contidos,
misturados às tuas secas lágrimas
que nunca derramara por mim.
Seguraste, assim, minha mão e caminhaste, me levaste,
nos encaminhaste àquela haste, àquela ponte amaldiçoada
e aterrorizante, à ponte distante e vibrante.
E foi lá, sobre as ondas irônicas que se arrebentavam no píer,
o mar sem afeto,
o céu encoberto pelo nosso teto,
que me fizeste teu último pedido,
as palavras te saltaram a boca
feito vômito,
te estrangularam a língua
e perduraram no ar,
me deixaram com náusea
e quase caí ao mar,
mas tua mão me salvou
pela centésima nona vez,
nos abraçamos e choramos,
misturamos nossas lágrimas
entre infinitos tormentos.
Teus lábios se distanciaram novamente
e te beijei para impedir que falasse
aquelas mesmas palavras,
mas ainda com os lábios grudados aos teus
ainda pude ouvir o teu pedido,
o último verso de teu poema:
"Acabe logo com meu coração que já não vive, não resiste".
Lá estava a arma em tua mão,
a segurei, te abracei com toda força minha,
quase sufoquei
e no abraço, assim, disparei.
Te senti o sangue percorrer o peito, a vida esvaziar-te
e me manchar a blusa branca
com teu sangue que me banhou todo o corpo.
Teu olhar inerte olhava o céu
enquanto eu beijava teus lábios mortos e congelados,
teu coração petrificado ia em direção ao fundo sombrio do mar.
Pus a maldita arma em minha boca
e disparei,
tu me traíste novamente
- havia uma bala apenas,
aquela bala encravada em teu coração.
Vaguei, voltei pelo caminho errado
e me desencontrei uma vez outra mais
em meu estado sem vida,
sem quase existência,
com total consciência.
E ainda é madrugada em minha vida,
o sol não nasce,
a lua não brilha,
as estrelas não existem,
apenas há nuvens,
nuvens negras
que me obscurecem ainda mais
o obscuro que me tornei,
o artefato anti-religioso que ditei
e esfriei no inverno mais rigoroso e gelado.
O perdão não existe, o fim já acabou,
tudo já terminou
e continuo amaldiçoado,
cansado de existir,
cansado de ser,
cansado de viver,
cansado de mim,
cansado de estar cansado.
As palavras me são lembranças,
o tormento maior,
daquele amor em que existi e fui e vivi.
Não posso sem ti, não posso sentir.
Não posso ser, não posso poder.
Há muito deixei de ser, deixei de viver e existir,
há muito me abandonei em mim mesmo num canto escuro e imundo desta metrópole agitada.
Tu estás ainda mais viva agora,
em tua plena liberdade,
em tua infinita felicidade do esquecimento,
da vida terna eterna,
enquanto estou preso em mim,
em meu próprio pensamento.
O disparo foi meu,
o sangue era teu,
mas quem morreu fui eu
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