Dois anos depois.
Um mais um diferente de dois.
O mundo estava em caos.
Tudo destruído.
Aqui, habitavam todos maus.
Por mim, já haveria ido.
Guerra para todo lado.
Metade da população mundial havia morrido. Tudo por causa da guerra.
Apôs a confirmação de vida em outros planetas, apôs a criação de vida artificial. O socialismo havia destruído o capitalismo. O dinheiro já não existia mais. E por causa de uma tentativa (inútil) de unificar todos os países, a guerra começou.
Caminhava na rua, como de costume. As pessoas andavam ao ar livre sempre com preocupação e expectativa, à espera de um ataque. Não se sabia como, nem quando começaria o ataque, mas uma hora começaria. E chegou a hora de começar.
Ouviu-se o som dos caças, em meio a gritos todos correram. Metralhadoras atiravam – para que lado? –, via pessoas ao seu lado morrerem, o sangue respingava em seu rosto. Ficou paralisado, em estado de choque. Quando o corpo de uma grávida caiu em seus braços, tentou reavivá-la, mesmo vendo que estava sem a cabeça, tentou salvar o feto, mas nada pôde fazer.
Correu, sem destino.
A explosão ao seu lado jogou-o para longe, os gritos e tiros deram lugar a um zunido, imaginou ter ficado surdo. Levantou, continuou a correr ao lado de pessoas – logo mortas.
Tiros.
Mais tiros.
Viu um bueiro. Tentou retirar a tampa.
É muito pesada.
Pôs a maior força que pôde, levantou um centímetro. Mais força. Levantou e a arrastou. Agora – onde antes havia um círculo de metal – havia um buraco, dele saiam odores, via a água imunda correr. Pulou dentro do buraco para salvar a vida.
Uma hora, duas horas. Gritos, tiros, explosões. Três horas, quatro.
Silêncio.
Passaram-se oito horas.
Ainda silêncio, barulho algum.
Esperar mais uma hora, por precaução.
Não havia tiros, nem gritos, ou bombas. Eles já foram, mataram todos. Completaram a missão: destruíram a cidade.
Saiu do bueiro. Não via nada.
Vagava em meio a sangue e corpos, o cheiro quase insuportável de carne podre atacava seu nariz e olhos. Suas pernas lutavam para sustentá-lo. Pensava em suicídio, mas não podia fazer isso, tinha que lutar, algo dizia para viver, pois ainda chegaria onde queria. Queria chegar, lutaria para chegar, estava no caminho.
Não havia água limpa (bebia água poluída), comida a única que tinha era carne humana apodrecida, essa era a alimentação de cada dia. A vida, um inferno.
A morte talvez fosse péssima, mas seria impossível ser pior que a vida naquele momento.
Um revólver na mão daquele soldado estendido no chão era sua chance.
Pegou o revólver pôs abaixo o queixo, pensou um instante, pensou de novo e atirou. Sua respiração parou, seus olhos fecharam, seu corpo caiu para trás, ficou lá, estendido.
Não saiu bala do cano, apenas clique. Sua vida não acabara ali. O tempo continuaria, a vida seguiria em frente. Ainda havia combustível para o carro da vida, fugitivo da morte.
A morte.
À vida.
Ainda deitado no chão observava no céu aquele pombo solitário, o mesmo pombo que voava em bando, grunhindo, estava ali, solitário e em silêncio, como em luto.
Dormiu.
Acordou, levantou, continuou vagando. Tentou pensar.
Havia um lado bom: já não havia corrupção, assaltantes, violência, já não havia civilização, apenas sangue e carne.
Estava enjoado, dor em todo o corpo, feridas. Não tinha noção do tempo, quantos dias, semanas, meses ou horas.
Na sua andança viu um soldado, fugiu.
Mas ele não atirou, então talvez fosse amigo. Olhou para ele uma última vez, viu a bandeira de seu país – onde antes era sua pátria, sua nação, onde vivera toda sua vida, lugar de origem de sua família. O mesmo lugar antes amado, agora odiado, habitado por mortos e ódios.
Ao vê-lo o soldado, sem pensar, soltou uma expressão.
– A guerra acabou.
Notícia perturbadora, vinda de um soldado.
– A guerra acabou.
A frase soava em seus ouvidos como música clássica e gritos enjoativos. Fazia ecoar um som dissonante.
– Acabou?
– Sim, acabou.
Desnorteado. Confuso. Alegre. Triste.
– Há quanto tempo?
– Duas semanas.
Duas semanas.
Dúvida.
– Como?
– Há duas semanas, a guerra acabou.
Som dissonante.
Duas semanas.
Duas semanas!
Duas semanas?
DUAS SEMANAS.
Durante todo esse tempo esteve “fora”, fugindo (de quê?).
Pensava ter-se passado quatro dias, cinco dias, seis, no máximo. Mas eram duas semanas, duas semanas. Muito tempo era muito tempo para uma pessoa ficar andando entre carnes podres – outrora seres humanos com vida e alma, mas agora apenas comida –, dormindo sobre poças de sangue.
– A guerra acabou – saltou de alegria e no impulso abraçou o soldado.
Seu rosto estava coberto por felicidade, por dentes brilhando a luz do sol. Seus olhos, imersos em lágrimas, brilhavam. Emoção, muita emoção. Todos os sentimentos, sentia todos os sentimentos percorrerem o seu corpo imundo e ferido. Seu rosto barbado, confuso.
– Meu Deus – levou a mão ao céu –, essa merda acabou.
Abraçou novamente o soldado. O soldado contaminado com a alegria retribuiu o abraço, e também sorriu, gritou.
– Eu não acredito, essa porra finalmente chegou ao fim.
Gargalhadas alegres.
O soldado levou-o a um carro, dirigiu por quilômetros à procura de sobreviventes vagos – como ele. Viram corpos de animais, de humanos, rios de sangue. Ainda podia ouvir os gritos, ver balas penetrando corações e cabeças, sentia náuseas. Sentia todas as balas penetrar seu corpo. Quilômetros de terror.
Cadáveres ficaram para trás.
A paisagem agora linda, árvores verdes, montanhas ao longe, recortando o céu, cobertas por nuvens. Ainda sentia o ódio e enjôo dos defuntos. Logo uma felicidade sobrepôs sentimentos amargos.
A paisagem lembrava-lhe o fim do apocalipse que vivera. Sobrancelhas arqueadas, expressão de ódio deu lugar ao Sorriso.
Viu borboletas voarem ao seu lado. Estava no paraíso. Agradecia por aquele revólver não ter disparado.
– Vocês estão procurando por sobreviventes?
O soldado fez sim com a cabeça.
– Quando começaram as buscas?
– Desde quando a guerra acabou.
– E quantos sobreviventes vocês encontraram até agora?
– Um. Apenas você. Você é o único sobrevivente dessa cidade.
Chorou, sabendo ser o único sobrevivente. Significava que toda sua família morreu, todos. Ninguém sobreviveu.
Nunca mais veria sua mãe, seu irmão, sua mulher. Lembrava da moça grávida que morreu em seus braços.
Era muita carga emocional, por isso dormiu.
Sonhou, sua família poderia estar viva, em outro país, eles podem ter fugido. Sim. Eles fugiram. Foi isso sim, sim foi isso.
Noventa e sete quilômetros percorridos.
Chegando ao quartel o soldado tentou acordá-lo, não acordou. Levou-o nos braços, pôs dentro de uma banheira. Abriu o chuveiro, deixou a água cair e tirar a sujeira.
Acordou pela sensação de afogamento.
– Aonde me trouxe?
– Ao quartel, mas nós preferimos chamar de “comando desinfetante” – um sorriso singelo apareceu – Esse lugar foi projetado para fazer a “limpeza” dos sobreviventes. E acho melhor você tomar banho.
– Onde?
– O banheiro é ali – apontou para uma porta branca – Lá tem toalha e roupa.
Foi até a porta, abriu, e tomou banho. Ao sair estava limpo, já não havia marca de sangue, ou qualquer outra sujeira, e já não sentia o cheiro da morte. Mas ainda tinha um ar de sujeira pela barba e cabelos crescidos.
Cortou o cabelo, raspou a barba, seu rosto estava sem nenhum pelo – a não ser a sobrancelha. Voltara o ar de jovem, não era o mesmo velho sujo, representante do sofrimento e da morte.
Apesar de estar limpo, seu corpo continuava esquelético. Não tinha rosto, e sim caveira. Sua pele estava seca. Bebeu dois litros de água, vomitou. Bebeu um copo de água, dessa vez não voltou.
– Durante a guerra – começou o homem do exército – surgiu um novo vírus, criado pelos Estados Unidos, para destruir o inimigo. E esse vírus gerou uma doença, que virou pandemia, matando milhões de pessoas. Por isso eu vou ter que observá-lo para ver se está ou não contaminado.
– Pode me observar.
Os principais sintomas da doença eram olhos cor violeta, aparência esquelética, cabelos com duas cores, voz rouca, unhas rachadas.
O homem do exército lembrou como era o cabelo antes de ser cortado (louro e castanho). Observou seus olhos cor de violeta. Pegou suas mãos e viu as unhas rachadas.
– E então, eu estou com essa doença? – falou com a voz rouca.
– Ainda não sei ao certo, vou tirar uma ultra-sonografia do seu corpo – caso na ultra-sonografia houvesse uma mancha no seu estômago, no seu cérebro, ou na sua perna, a doença seria confirmada.
O raio-X mostrou manchas em seu cérebro, pernas e estômago.
– O que a ultra-sonografia diz?
– Está... Está tudo bem com você – falou vacilante. Estava mentindo, pois ele estava com a doença no quinto estágio, não havia cura a partir desse estágio, a não ser a morte.
A noite caiu e eles foram dormir.
Eu não posso matar ele, pensava o soldado, Eu não consigo, não tenho coragem.
Mas ele tinha que matá-lo, ou ia morrer.
Pegou o fuzil ao lado da cama, caminhou ao quarto do sobrevivente. Pôs a mão na maçaneta, preparou para abrir, parou.
Eu não vou conseguir.
O soldado, por mais frieza que demonstrasse, sentia pureza no homem e apegou-se a ele no instante momento que gargalhou junto a ele no momento em que o encontrou.
Vou matá-lo.
Não podia fazer isso, afinal ele agora era seu irmão, além de ser o único sobrevivente.
Mas mataria.
Abriu a porta, mirou na cabeça. O dedo indicador estava sobre o gatilho, bastava puxar.
Não conseguia.
O homem virou de lado.
Estava pronto para atirar, atiraria.
Soltou o gatilho. Uma lágrima saltou do olho, correu até seu pescoço.
Continuou a apontar o fuzil até amanhecer.
O homem, dormindo, sonhava com um quarto, onde na porta havia escrito: NUNCA ENTRE AQUI. Ele abriu, viu o sorriso, tão lindo sorriso, de sua mãe, estampado em um rosto sem corpo, viu a mão de seu pai, até escutar o grito de seu irmão: “sai daqui cara, por favor, sai daqui cara”.
Acordou e deparou-se com uma arma à sua frente apontada para sua testa.
– O que é isso?
– Um fuzil. Eu vou te matar. – soou como brincadeira.
– Mas por quê? – pôs a mão à frente o fuzil, cobrindo o rosto.
– Você foi infectado, se eu não te matar, nós dois vamos morrer.
– E se você estiver errado. Não pode me matar, afinal eu sou o único sobrevivente.
– Qual o seu nome? – perguntou o soldado.
– Meu nome? – excitou – É Caio.
– Caio!? Esse nome vai ficar para a história, – sua voz embargou – se houver história.
E atirou, o som da bala soou em seu ouvido como uma explosão, como o grito de sua mãe chamando-o para jantar. Ficou olhando para o fuzil como se fosse seu único companheiro, apareceu um modesto sorriso no seu rosto. Olhou para o homem – que ainda tinha o coração batendo e o sangue correndo em suas veias – e estendeu a mão, Carlos segurou-a firmemente, aquela era a mão salvadora.
– Saia daqui, corra.
– Não, eu não vou fazer isso, vou ficar aqui com você. Eu quero voltar... Voltar, - olhou para os pés e retornou o olhar – voltar para casa.
– Casa? Não há mais casa. Acabou tudo, não existe mais nada. Tudo acabou.
Foi como um tapa no rosto de Carlos. Finalmente havia percebido: não havia mais sentido em viver, o único sentido era morrer.
– Não. Olha, talvez haja mais sobreviventes, e nós podemos, sei lá, recomeçar.
Os olhos do soldado brilharam, aquilo era somente um sonho. Podia haver sobreviventes. Tudo recomeçaria. Do recomeço um mundo melhor, se todos sobreviventes fossem boas pessoas. Se quase tudo fora extinto, o mal também deveria ter sido extinto.
Novamente abraçaram-se.