Duas da manhã, estava bêbado – com
duas camisinhas no bolso. A insônia estava agarrada a mim e gargalhava todo
tipo de coisa sobre Geni e Carlos. Foi-se a madrugada, dei bom-dia ao sol antes
de dormir. Dormi e acho que sonhei com algo, foi um sonho erótico com Geni, não
lembro bem. Eram dez da manhã, a campainha gritava frenética. Eu mesmo não
agüentava meu hálito, vomitei-o. Eu sei que você está aí. Era Geni: Já vou,
amor. Gargarejei e engoli a água imunda de cerveja e sono. Quando abro a porta,
ela – O que foi que te deu? Que história é essa de cuspir na cara do Carlos?.
Sorri – O que é que ele estava fazendo lá? Aquele cara está sempre atrás de
mim, pede pra ele parar. Como assim? Aquele é o trabalho dele! Os olhos dela
brilhavam feito lua, o batom dela era vermelho pornográfico, seu hálito estava
melhor que o meu. Geni, eu preciso de você de volta. Ela parou de resmungar. O
quê? Não tem mais dinheiro para pagar as putas? – Não, eu te amo. Todas essas
garotas não são nada, eu tento sentir nelas o mesmo que sentia em ti, mas...
Minha boca foi atraída à dela, senti o cheiro de vermelho, ela não recuou.
Puxei-a, afundei minha língua na dela, gosto de Colgate, de Geni. Eu pensei
estar sonhando e parei. A porta estava fechada, ela ofegava. Não, não era sonho.
Abracei-a quase a esmagando. Ela tentou me esmagar também – caímos no chão,
passei os lábios pelo pescoço alvo antes de levantar-se e sussurrar um grito:
Não há mais nós, eu amo o Carlos. Mas eu te amo, Geni! Eu sei, eu sei, mas você
sabe que eu não posso voltar para aquilo tudo, eu não quero lembrar, apesar de continuar a te amar, então – por favor – me esqueça! Ela correu, não conseguiu abrir a
porta, a maçaneta estava suja e lisa. Eu girei a maçaneta e escancarei o mundo lá de fora, vi uma lágrima lhe escorrer
desde o olho até seu decote. Deixei a porta aberta, não havia mais porquê
fechá-la. Agora poderia até me jogar pela janela, mas era um jeito muito idiota
de se morrer.Os cigarros acabaram, fumei o ar urbano mesmo – não havia muita
diferença, Num canto do quarto havia uma pilha de livros, meus livros (Sonhos
Tardios); eles sim mereciam ser jogados pela janela – joguei uns cinco e fui
tomar banho. Já pronto, saí. Talvez encontrasse algum destino pelo caminho.
Lá fora quase anoitecia, meus pés
estavam agora enfurnados na areia e o mar dançava só pra mim. Lembrei:
“Já não há
mar
Se eu não te amar,
Não há a vida sem minha querida,
Não há nada
Sem a minha amada”.
É um dos meus poemas de Sombras Tardias, o poema menos elogiado do livro. O celular toca, é Geni:
Tem um homem aqui atrás de você, um tal de Dantas Alleri. Dantas Alleri, de
cabelo branco e orelhas de lobo? Sim. É o editor-chefe da Alleri Editora –
editora mais prestigiada do país. Disse para ele ir à sua casa. Ela desliga,
volto correndo ao apartamento e chego em vinte e oito minutos, fico tonto e
vomito o cansaço na privada, a descarga não está prestando, o banheiro cheira a
fezes. Dantas me chama pelo nome pela porta aberta. Vou até ele, cumprimento-o
como alguém respeitável. Você tem mais poemas como aqueles de Sombras Tardias?
Tenho uns sete. Se você me entregar um livro de poesia até o final deste mês,
nós o publicamos, mas queremos um sucesso tão grande quanto o seu livro de
estréia. Não quer entrar? Não, obrigado, já vou. Até mais. Retribuo o sorriso
sarcástico. Na TV não há nada além de nada. Ao som do noticiário tento escrever
qualquer coisa, não lembro se sou destro ou canhoto. Rabisco qualquer coisa e
aquilo fica parecendo com os cabelos de Geni. Penso em um poema, escrevo-o com
a direita; outro poema, com a esquerda – mais outro com a esquerda. São dez
agora. Durmo ali mesmo, sobre os livros empoeirados.
Acordo com outro poema, jogo tudo
para o papel, releio. Vou ao banheiro mijar, a descarga não funciona e aquela
mistura continua lá. Volto a escrever outro poema de esquerda, seguido de um de
direita. Escrevo mais muitos poemas. Preciso de um computador. Não sei que
horas são, está quente, ainda estou com fome. São mais de vinte. Nenhum está
tão bom quanto Sombras, saio para espairecer. Você que é o autor de Sombras
Tardias? Sim. Me dá um autógrafo? As pessoas me reconhecem agora, me barbeei.
Talvez até Geni me achasse bonito se me visse agora, sem aquela barba suja na
cara. E ela está ali, sentada no banco. Geni! Não, não é ela. Onde está ela
agora?
Olhe, dona Geni disse que não queria
mais o senhor aqui. Liga pra ela então, diz que é urgente. Dona Geni...? Fala
que é sobre o livro. Um minuto e quarenta e dois segundos se passam. Pode
subir. Obrigado. O elevador demora, ele fede a Carlos. Geni demora a abrir a
porta depois que toco a campainha. Oi, Geni, o Carlos está aí? Não; vai, fala
logo o que você quer. Não vai me convidar a entrar? O seu olhar pesa, ela hesita
e abre a porta como um convite. Eu só vim dizer que preciso do teu amor de
volta, só sei escrever com ele, sobre ele. Você é um poeta, é muito inteligente
– não precisa de mim. Preciso. E aqueles prêmios todos? Minha poesia é tua,
feita toda para ti. Por favor, só uma noite – é o bastante para escrever um
livro. Não!; É melhor você ir, o Carlos deve chegar daqui a pouco. Que chegue
então! Em alguns minutos eu já estava em casa, me masturbando – como se fosse
Geni comigo. Com as mãos ainda sujas escrevi dois poemas e dormi. Eram sete e
quarenta quando acordei com a mão esquerda ainda melada e grudenta de mim,
lavei as mãos, escovei os dentes. Alô, Dantas? Sim. Estou com trinta e três
poemas prontos. Traga-os.
Ao final do dia recebo um telefonema
do tradutor: Os poemas estão uma merda. Você tem outra chance. Só durmo e sonho
com nada. Acordo com os tiros, morreram três moleques do morro. Seu João do bar
também levou um tiro e está no hospital. Desço para ver se não levo um tiro
também. Uma das garotas do bairro pergunta se não quero me divertir. Claro que
sim, posso te chamar de Geni? Muito prazer, meu nome é Geni. Ela ria tanto
quanto eu na cama. No escuro eu nem sabia o que beijava, se eram seus seios ou
suas costas, sua boca ou sua vagina. Ela tinha uma voz doce. Geni? Sim, amor,
estou aqui. Nos aprofundamos na gargalhada do outro. Ela já estava se arrumando
para ir embora, paguei os cinqüenta reais. Você tem amigos? Acho que não, mas
tenho camisinhas. Ela sorriu e falou com aquela voz doce: Tchau, amor. Tchau,
Geni.
Uma semana se passou e só o ponteiro
do relógio se movia, eu continuei parado, consertei a descarga – o apartamento
só cheirava a urina mesmo agora – e eu olhava o céu do meu apartamento.
Estava lendo Alphonsus Guimaraens
quando percebi que não fumava nem bebia há mais de um mês e alguém bateu à
porta. Geni? Eu também preciso de você por uma noite, só por uma noite.
Gargalhei estridente, mas parei quando vi os seus olhos marejados, ela sorriu e
alisou meus cabelos como na nossa primeira vez e, como no primeiro beijo, ela
me puxou e beijou minha bochecha antes de colar seus lábios nos meus,
despimo-nos de tudo, de qualquer roupa e pensamento. E não foi uma transa como
com todas outras, foi amor. Geni! Como só ela. Me lambuzei, nos lambuzamos e durante
toda a noite apenas uma frase a cama escutou de Geni, entre os gemidos: Ainda
te amo tanto. Apertei-a e senti seus peitos seios em meus peitos, senti sua
língua percorrer pelo meu corpo, enquanto minha mão pousava naqueles cabelos
castanhos e tão estranhos ao ponto de ser outra cor – quase a cor do pecado;
penetramos em nós mesmos, nos descobrimos. Dormimos abraçados, quando acordei
estava sem roupa e sem Geni. Escrevi sem roupa mesmo, foi um dia e meio somente
de poesia. Tenho trinta e dois novos poemas. Essa é a sua última chance. Me
visto, vou de moto-táxi à editora, enquanto subo as escadas um dos poemas me
cai, pesco-o novamente. Amanhã ligamos... Fui ao bar, seu João ainda estava em
repouso, quem atendeu foi seu filho Antônio – moço bonito e inteligente –, havia
lido meu livro. Amei seu livro, você é um ótimo poeta, parabéns! Voltei a fumar
e beber. Não me embebedei, voltei para casa sóbrio, no caminho tropecei no
corpo de um velho. Às dez da manhã eu estava na farmácia, comprando caminhas,
comprei algumas com gosto de morango. Alleri ligou: Próxima semana nós
começamos a editar o livro.
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