terça-feira, 31 de julho de 2012

A nossa aids - Capítulo IV, Meus escorpiões


            E o Miguel? Está bem também. O resgate havia sido pago, Carlos não sofreu um arranhão sequer e agora se recuperava na sua mansão em Miami com a família. Eu havia acabado de doar o sangue para Geni quando recebi o telefonema. Alleri me dizia que o livro seria um sucesso estrondoso, estrondoso. Carlos me olhava desconfiado a todo momento, a única coisa que ouvi ele falar desde a notícia da gravidez foi: O filho é seu? Não sei. E até agora ele não diz palavra alguma, mas me xinga, me ofende com aqueles olhares indiscretos. É um desconforto termos que estar no mesmo lugar, sentados lado a lado e até tentava odiá-lo, mas não tinha força nenhuma para fazê-lo. Foi assim durante todo o dia: parede verde, som de noticiário e telefone tocando. Até o médico me chamar: Me desculpe, mas você não poderá doar sangue. Por que não? Presumo que você ainda não saiba... O quê você está dizendo? Você está infectado vírus HIV. AIDS?  Eu tenho AIDS?, gritei e essas palavras quase me rasgaram a garganta. Mas você teve sorte, ainda está no estágio inicial. Aids? Eu tenho aids? AIDS. Há tempos que eu não sentia uma lágrima correr por mim, dessa vez foram milhares. O médico falava e falava, mas eu só entendia as palavras AIDS e doença, morrer, meu coração era um tambor abafado e a única coisa que escutava. Me trouxeram um copo d’água, não sei de onde surgiu. Bebi; bebi. Me virei e deixei o médico falando com minhas costas, sentei ao lado de Carlos e compreendi. Percebi que não havia nada a ser feito, abracei-me a Carlos, o rosto enxaguado de lágrimas. Ele não relutou nem entendeu, seu olhar agora tinha desprezo misturado a todos os outros sentimentos. Apertava-o, era o único por perto, o único que eu tinha para abraçar. Sussurrei para mim: Foram só duas, apenas duas, duas vezes que eu não usei camisinha, foram somente duas. Senti que ele me abraçava agora. Não entendi, não entendemos, não compreendemos, ficamos abraçados até eu dormir. Acordei numa outra cama que não a minha, nem de hospital, cheirava a Geni, era o apartamento de Geni. Levantei e caminhei pela casa. Encontrei-o na cozinha. Você está melhor? E Geni? Ela está melhor, conseguiram o sangue que ela precisava, estancaram o sangramento. E você? Não posso estar melhor. Alimente-se.  Na mesa havia pães, café, bolo, queijo e suco. Comi o quanto pude.  Eu vou sair daqui a uma hora, tenho que trabalhar. Quer carona? Quero, tenho que passar na editora. Escutamos Legião Urbana, ele ao menos tinha bom gosto. Como está o andamento do livro? Fique despreocupado, estamos resolvendo tudo, provavelmente ele será lançado no início do próximo ano, nós ligaremos. Um sorriso e fui embora, no caminho vi muitas prostitutas vestidas como damas, era um ódio que me consumia e me fazia ter náuseas, eu preciso procurar um médico, preciso de um tratamento. Agora tenho ódio de todas elas. Ei, gatão, que tal hoje? Meu punho levantou acima de sua cabeça e quase esmurrei aquele rosto tão usado e beijado, não consegui, corri para o mais longe possível daquilo. Preciso ir ao médico, tenho que fazer tratamento. Preciso sentar, sento em qualquer lugar. Me perco entre pensamentos, me sufoco em mim e demoro a me achar entre tantas coisas imaginárias enquanto o sol me queima a cara. Preciso de casa.
Estava dormindo no chão infecto e imundo do banheiro quando Carlos veio perturbar a tranqüilidade do apartamento. Seus olhos brilhavam tanto que chegavam a ofuscar o sorriso. Ela acordou e quer falar com você. Eu ainda estava atordoado, não entendi aquele sorriso. Geni falava entre alguns suspiros dolorosos, estávamos apenas eu e ela no quarto. Olá! Oi! Você se sente bem? Sim. Carlos já falou comigo disse que estão se dando bem. É, estamos nos dando bem. Vocês são muito parecidos, gostam das mesmas coisas, pensam da mesma maneira, eu sou prova disso. Aquela fala havia me ensurdecido, não soube o que dizer. A voz dela ficava cada vez mais sussurrada: Quais são as novidades do mundo lá de fora que eu perdi? Carlos já te contou? O quê? Sobre o bebê. Bebê, que bebê? Eu estou grávida? Sorri cinicamente. Responda!, eu estou grávida? Sim, você está grávida. Os seus olhos se banharam na própria água e sua voz engrandeceu, tornou-se quase grito. Desgraçado, desgraçado! Você é o culpado, você é o culpado. Eu não devia ter te visitado, eu não devia. Saia daqui! Mas, Geni... Saia!, não quero ver seu rosto por um tempo, saia daqui! Não havia mais lágrimas em mim para serem choradas. Carlos esperava. E então? Ela está bem. Vou falar com ela. Não, melhor não, ela quer ficar sozinha. O sorriso estampado no rosto de Carlos era inocente, quase infantil, talvez não percebesse o que estava acontecendo. Vamos beber! Ele realmente não fazia ideia do que estava acontecendo. Comprou bebidas numa mercearia e fomos para seu apartamento. Bebemos, quase todo o tempo em silêncio, nos embebedamos. Ele me abraçou, sorri, gargalhamos. Seus olhos eram confusos, ele me puxou e alisou minha cabeça enquanto aproximava o rosto do meu, parou a alguns centímetros. Tentamos falar. Falar o quê? Eu estava consciente ainda, ele também, nossos corpos queimavam. Nos aproximávamos, os lábios encostaram-se – a cena ficou pausada. E agora?, pensávamos. Nos empurrávamos em direção ao outro, os lábios ainda se tocavam, ele tirou a camisa, rasgou a minha, fomos para a cama. Ele estava em cima de mim. Mas, Carlos... minha língua não pôde continuar, havia outra língua em minha boca. Ele tirava a cueca. Eu pensava em correr dali, correr, fugir daquela cena surreal. Não sou gay! Não posso fazer isso. E ele me acariciava. Eu estou com aids, não tenho nada a perder. Ele tinha camisinhas. Nos ajudamos a pôr as camisinhas. Nos afogamos em nós mesmos, sujamos os lençóis com nossos suores, nossas salivas. A bebida era só mais uma desculpa qualquer, sabíamos o que fazíamos, estávamos batizados pelo álcool, isso era o nosso perdão – a própria maldição. Dormi em cima dele. Acordei sozinho. Não havia ninguém no apartamento, tomei banho e fui ao hospital. Carlos não estava lá, Geni dormia. Esperei que acordasse, só pensava nele e tentava esquecer o inesquecível. O que você quer aqui? Geni, nós precisamos conversar. Não, não precisamos. Mas, Geni, você precisa entender, esse filho é do Carlos. Não, não é! Ele é seu filho. E agora toda aquela merda volta! Como você tem certeza? Nos últimos meses só transei com você e Carlos, mas Carlos fez vasectomia – quando o conheci era ator pornô, não podia engravidar as atrizes. Então agora eu serei pai? Sim... Ela mergulhou nas lágrimas e soluços. Carlos está feliz por isso, sempre quis adotar uma criança, ele acredita em milagres e acha que vai ser pai, acho que ele não se importa de eu ter engravidado de outro homem. Carlos, Carlos, Carlos! Por que ele teve que atrapalhar a nossa vida?
- Atrapalhar? Não foi ele quem atrapalhou, foi você, você quem destruiu tudo. Você quem me largou, me deixou como se eu fosse lixo. Você era um poetazinho qualquer, um poetazinho de merda quando te conheci e eu te amava, te amava tanto... Ninguém poderia acreditar em tanto amor. E mesmo que eu não queira, ainda amo. Eu te amo incontrolavelmente e impossivelmente. Todas as noites quero e tento te esquecer, pensar que você nunca existiu, mas é impossível. Por que me trocou por aquelas putas? Por quê? Eu estava grávida, você não sabia, nem percebeu. Eu estava grávida e não tinha nenhum emprego. Mas eu sabia fazer sexo e meu curso de teatro ainda valia, você sempre me achou uma ótima atriz, e acho que sou. Um diretor de filmes eróticos me viu na rua e lembrou de mim, lembrou das peças que fiz, me convidou para participar de um filme – era um bom dinheiro, um bom dinheiro. Foi num desses filmes que conheci Carlos.
- E o bebê?
- Ele morreu, aborto natural. Foi uma desgraça, seria uma menina, uma bela menina.
Eu tentava responder, tentei balbuciar qualquer coisa e as palavras soltas uniram-se para formar a frase indesejada: Eu não te abandonei.
- Não, não abandonou. Mas eu não viveria com tudo aquilo, aquele cheiro infernal de sexo na nossa cama, sempre cheia de putas. Você sempre estava bêbado, sempre drogado – tudo por causa da porra daquele livro.
- Sombras tardias.
- Você e seu novo estilo. Você era um gênio, o gênio artista da nova década, não era assim que os críticos te chamavam? E a cada elogio seu ego crescia, você se entupia ainda mais de drogas e álcool, sempre levando putas para casa. Você me esqueceu, eu não podia continuar. Aposto que você só se deu conta da minha ausência uma semana depois que parti. E, sim, isso é abandono, o mais cruel dos abandonos. Eu te odeio, te odeio.
- Preciso falar uma coisa.
Ela agora resmungava para si trechos de meus poemas e da crítica, ela sempre foi minha maior fã. Você sempre misturando os diálogos, misturando tudo, confundindo os leitores, surpreendendo os críticos, criando a nova arte transgênica e trans-zênica.
- Eu preciso te falar uma coisa, Geni.
Sempre precisando falar o que acha, o que sente, sempre achando que é dono das palavras. Você e os versos sem rimas e sem métrica, os adjuntos sempre fora de ordem e pós-posicionados, você sempre inovando, sensualizando a poesia.
- Eu estou com aids!
Ela parou.
Seu olhar rodou pelo quarto antes de pousar sobre mim. Ela gargalhou como um louco. Você é um brincalhão. E falava qualquer coisa em polonês, com um jarro rosa de flores na mão, apontando para minha direção. Enfermeira, tira esse maluco daqui! Enfermeira! A enfermeira chegou depois de ela jogar o jarro e gritar: Poeta de merda que você é, desgraçado, não sabe nada, não sabe viver, não sabe compor uma vida certa, não sabe compor a própria vida! Cadê a poesia, cadê os poemas? Onde está a poesia nessas horas?
- Eu estou com aids.

             

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