E o Miguel? Está bem também. O
resgate havia sido pago, Carlos não sofreu um arranhão sequer e agora se
recuperava na sua mansão em Miami com a família. Eu havia acabado de doar o
sangue para Geni quando recebi o telefonema. Alleri me dizia que o livro seria
um sucesso estrondoso, estrondoso. Carlos me olhava desconfiado a todo momento,
a única coisa que ouvi ele falar desde a notícia da gravidez foi: O filho é
seu? Não sei. E até agora ele não diz palavra alguma, mas me xinga, me ofende
com aqueles olhares indiscretos. É um desconforto termos que estar no mesmo
lugar, sentados lado a lado e até tentava odiá-lo, mas não tinha força nenhuma
para fazê-lo. Foi assim durante todo o dia: parede verde, som de noticiário e
telefone tocando. Até o médico me chamar: Me desculpe, mas você não poderá doar
sangue. Por que não? Presumo que você ainda não saiba... O quê você está
dizendo? Você está infectado vírus HIV. AIDS?
Eu tenho AIDS?, gritei e essas palavras quase me rasgaram a garganta.
Mas você teve sorte, ainda está no estágio inicial. Aids? Eu tenho aids? AIDS.
Há tempos que eu não sentia uma lágrima correr por mim, dessa vez foram
milhares. O médico falava e falava, mas eu só entendia as palavras AIDS e
doença, morrer, meu coração era um tambor abafado e a única coisa que escutava.
Me trouxeram um copo d’água, não sei de onde surgiu. Bebi; bebi. Me virei e
deixei o médico falando com minhas costas, sentei ao lado de Carlos e
compreendi. Percebi que não havia nada a ser feito, abracei-me a Carlos, o
rosto enxaguado de lágrimas. Ele não relutou nem entendeu, seu olhar agora
tinha desprezo misturado a todos os outros sentimentos. Apertava-o, era o único
por perto, o único que eu tinha para abraçar. Sussurrei para mim: Foram só
duas, apenas duas, duas vezes que eu não usei camisinha, foram somente duas.
Senti que ele me abraçava agora. Não entendi, não entendemos, não
compreendemos, ficamos abraçados até eu dormir. Acordei numa outra cama que não
a minha, nem de hospital, cheirava a Geni, era o apartamento de Geni. Levantei
e caminhei pela casa. Encontrei-o na cozinha. Você está melhor? E Geni? Ela
está melhor, conseguiram o sangue que ela precisava, estancaram o sangramento.
E você? Não posso estar melhor. Alimente-se.
Na mesa havia pães, café, bolo, queijo e suco. Comi o quanto pude. Eu vou sair daqui a uma hora, tenho que
trabalhar. Quer carona? Quero, tenho que passar na editora. Escutamos Legião
Urbana, ele ao menos tinha bom gosto. Como está o andamento do livro? Fique
despreocupado, estamos resolvendo tudo, provavelmente ele será lançado no
início do próximo ano, nós ligaremos. Um sorriso e fui embora, no caminho vi
muitas prostitutas vestidas como damas, era um ódio que me consumia e me fazia
ter náuseas, eu preciso procurar um médico, preciso de um tratamento. Agora
tenho ódio de todas elas. Ei, gatão, que tal hoje? Meu punho levantou acima de
sua cabeça e quase esmurrei aquele rosto tão usado e beijado, não consegui,
corri para o mais longe possível daquilo. Preciso ir ao médico, tenho que fazer
tratamento. Preciso sentar, sento em qualquer lugar. Me perco entre
pensamentos, me sufoco em mim e demoro a me achar entre tantas coisas
imaginárias enquanto o sol me queima a cara. Preciso de casa.
Estava dormindo no chão infecto e imundo
do banheiro quando Carlos veio perturbar a tranqüilidade do apartamento. Seus
olhos brilhavam tanto que chegavam a ofuscar o sorriso. Ela acordou e quer
falar com você. Eu ainda estava atordoado, não entendi aquele sorriso. Geni
falava entre alguns suspiros dolorosos, estávamos apenas eu e ela no quarto.
Olá! Oi! Você se sente bem? Sim. Carlos já falou comigo disse que estão se
dando bem. É, estamos nos dando bem. Vocês são muito parecidos, gostam das
mesmas coisas, pensam da mesma maneira, eu sou prova disso. Aquela fala havia
me ensurdecido, não soube o que dizer. A voz dela ficava cada vez mais
sussurrada: Quais são as novidades do mundo lá de fora que eu perdi? Carlos já
te contou? O quê? Sobre o bebê. Bebê, que bebê? Eu estou grávida? Sorri
cinicamente. Responda!, eu estou grávida? Sim, você está grávida. Os seus olhos
se banharam na própria água e sua voz engrandeceu, tornou-se quase grito.
Desgraçado, desgraçado! Você é o culpado, você é o culpado. Eu não devia ter te
visitado, eu não devia. Saia daqui! Mas, Geni... Saia!, não quero ver seu rosto
por um tempo, saia daqui! Não havia mais lágrimas em mim para serem choradas.
Carlos esperava. E então? Ela está bem. Vou falar com ela. Não, melhor não, ela
quer ficar sozinha. O sorriso estampado no rosto de Carlos era inocente, quase
infantil, talvez não percebesse o que estava acontecendo. Vamos beber! Ele
realmente não fazia ideia do que estava acontecendo. Comprou bebidas numa
mercearia e fomos para seu apartamento. Bebemos, quase todo o tempo em
silêncio, nos embebedamos. Ele me abraçou, sorri, gargalhamos. Seus olhos eram
confusos, ele me puxou e alisou minha cabeça enquanto aproximava o rosto do
meu, parou a alguns centímetros. Tentamos falar. Falar o quê? Eu estava
consciente ainda, ele também, nossos corpos queimavam. Nos aproximávamos, os
lábios encostaram-se – a cena ficou pausada. E agora?, pensávamos. Nos
empurrávamos em direção ao outro, os lábios ainda se tocavam, ele tirou a
camisa, rasgou a minha, fomos para a cama. Ele estava em cima de mim. Mas,
Carlos... minha língua não pôde continuar, havia outra língua em minha boca.
Ele tirava a cueca. Eu pensava em correr dali, correr, fugir daquela cena
surreal. Não sou gay! Não posso fazer isso. E ele me acariciava. Eu estou com aids,
não tenho nada a perder. Ele tinha camisinhas. Nos ajudamos a pôr as camisinhas.
Nos afogamos em nós mesmos, sujamos os lençóis com nossos suores, nossas
salivas. A bebida era só mais uma desculpa qualquer, sabíamos o que fazíamos,
estávamos batizados pelo álcool, isso era o nosso perdão – a própria maldição.
Dormi em cima dele. Acordei sozinho. Não havia ninguém no apartamento, tomei
banho e fui ao hospital. Carlos não estava lá, Geni dormia. Esperei que
acordasse, só pensava nele e tentava esquecer o inesquecível. O que você quer
aqui? Geni, nós precisamos conversar. Não, não precisamos. Mas, Geni, você
precisa entender, esse filho é do Carlos. Não, não é! Ele é seu filho. E agora
toda aquela merda volta! Como você tem certeza? Nos últimos meses só transei
com você e Carlos, mas Carlos fez vasectomia – quando o conheci era ator pornô,
não podia engravidar as atrizes. Então agora eu serei pai? Sim... Ela mergulhou
nas lágrimas e soluços. Carlos está feliz por isso, sempre quis adotar uma
criança, ele acredita em milagres e acha que vai ser pai, acho que ele não se
importa de eu ter engravidado de outro homem. Carlos, Carlos, Carlos! Por que
ele teve que atrapalhar a nossa vida?
- Atrapalhar? Não foi ele quem
atrapalhou, foi você, você quem destruiu tudo. Você quem me largou, me deixou
como se eu fosse lixo. Você era um poetazinho qualquer, um poetazinho de merda
quando te conheci e eu te amava, te amava tanto... Ninguém poderia acreditar em
tanto amor. E mesmo que eu não queira, ainda amo. Eu te amo incontrolavelmente
e impossivelmente. Todas as noites quero e tento te esquecer, pensar que você
nunca existiu, mas é impossível. Por que me trocou por aquelas putas? Por quê?
Eu estava grávida, você não sabia, nem percebeu. Eu estava grávida e não tinha
nenhum emprego. Mas eu sabia fazer sexo e meu curso de teatro ainda valia, você
sempre me achou uma ótima atriz, e acho que sou. Um diretor de filmes eróticos
me viu na rua e lembrou de mim, lembrou das peças que fiz, me convidou para
participar de um filme – era um bom dinheiro, um bom dinheiro. Foi num desses
filmes que conheci Carlos.
- E o bebê?
- Ele morreu, aborto natural. Foi uma
desgraça, seria uma menina, uma bela menina.
Eu tentava responder, tentei balbuciar
qualquer coisa e as palavras soltas uniram-se para formar a frase indesejada:
Eu não te abandonei.
- Não, não abandonou. Mas eu não viveria
com tudo aquilo, aquele cheiro infernal de sexo na nossa cama, sempre cheia de
putas. Você sempre estava bêbado, sempre drogado – tudo por causa da porra
daquele livro.
- Sombras tardias.
- Você e seu novo estilo. Você era um
gênio, o gênio artista da nova década, não era assim que os críticos te chamavam?
E a cada elogio seu ego crescia, você se entupia ainda mais de drogas e álcool,
sempre levando putas para casa. Você me esqueceu, eu não podia continuar.
Aposto que você só se deu conta da minha ausência uma semana depois que parti.
E, sim, isso é abandono, o mais cruel dos abandonos. Eu te odeio, te odeio.
- Preciso falar uma coisa.
Ela agora resmungava para si trechos de
meus poemas e da crítica, ela sempre foi minha maior fã. Você sempre misturando
os diálogos, misturando tudo, confundindo os leitores, surpreendendo os
críticos, criando a nova arte transgênica e trans-zênica.
- Eu preciso te falar uma coisa, Geni.
Sempre precisando falar o que acha, o
que sente, sempre achando que é dono das palavras. Você e os versos sem rimas e
sem métrica, os adjuntos sempre fora de ordem e pós-posicionados, você sempre inovando,
sensualizando a poesia.
- Eu estou com aids!
Ela parou.
Seu olhar rodou pelo quarto antes de
pousar sobre mim. Ela gargalhou como um louco. Você é um brincalhão. E falava
qualquer coisa em polonês, com um jarro rosa de flores na mão, apontando para
minha direção. Enfermeira, tira esse maluco daqui! Enfermeira! A enfermeira
chegou depois de ela jogar o jarro e gritar: Poeta de merda que você é,
desgraçado, não sabe nada, não sabe viver, não sabe compor uma vida certa, não
sabe compor a própria vida! Cadê a poesia, cadê os poemas? Onde está a poesia
nessas horas?
- Eu estou com aids.
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