terça-feira, 31 de julho de 2012

Pórtico erótico

Na vivacidade do mundo imundo
eu vivo a mesma eroticidade do nascimento
dum outro tormento de tantos pensamentos
sem razão, sem invenção.
E nos teu olhos olho o óleo fugaz
da nossa paz sem menos nem mais
dos corpos tortos e mortos sem sexo
sem hora marcada depois ou agora.
Romântico e erótico, assim foi feito
o perfeito de viver, escrever e fazer
- com continuar, sem pensar
somente amar e transar

A nossa aids - Capítulo IV, Meus escorpiões


            E o Miguel? Está bem também. O resgate havia sido pago, Carlos não sofreu um arranhão sequer e agora se recuperava na sua mansão em Miami com a família. Eu havia acabado de doar o sangue para Geni quando recebi o telefonema. Alleri me dizia que o livro seria um sucesso estrondoso, estrondoso. Carlos me olhava desconfiado a todo momento, a única coisa que ouvi ele falar desde a notícia da gravidez foi: O filho é seu? Não sei. E até agora ele não diz palavra alguma, mas me xinga, me ofende com aqueles olhares indiscretos. É um desconforto termos que estar no mesmo lugar, sentados lado a lado e até tentava odiá-lo, mas não tinha força nenhuma para fazê-lo. Foi assim durante todo o dia: parede verde, som de noticiário e telefone tocando. Até o médico me chamar: Me desculpe, mas você não poderá doar sangue. Por que não? Presumo que você ainda não saiba... O quê você está dizendo? Você está infectado vírus HIV. AIDS?  Eu tenho AIDS?, gritei e essas palavras quase me rasgaram a garganta. Mas você teve sorte, ainda está no estágio inicial. Aids? Eu tenho aids? AIDS. Há tempos que eu não sentia uma lágrima correr por mim, dessa vez foram milhares. O médico falava e falava, mas eu só entendia as palavras AIDS e doença, morrer, meu coração era um tambor abafado e a única coisa que escutava. Me trouxeram um copo d’água, não sei de onde surgiu. Bebi; bebi. Me virei e deixei o médico falando com minhas costas, sentei ao lado de Carlos e compreendi. Percebi que não havia nada a ser feito, abracei-me a Carlos, o rosto enxaguado de lágrimas. Ele não relutou nem entendeu, seu olhar agora tinha desprezo misturado a todos os outros sentimentos. Apertava-o, era o único por perto, o único que eu tinha para abraçar. Sussurrei para mim: Foram só duas, apenas duas, duas vezes que eu não usei camisinha, foram somente duas. Senti que ele me abraçava agora. Não entendi, não entendemos, não compreendemos, ficamos abraçados até eu dormir. Acordei numa outra cama que não a minha, nem de hospital, cheirava a Geni, era o apartamento de Geni. Levantei e caminhei pela casa. Encontrei-o na cozinha. Você está melhor? E Geni? Ela está melhor, conseguiram o sangue que ela precisava, estancaram o sangramento. E você? Não posso estar melhor. Alimente-se.  Na mesa havia pães, café, bolo, queijo e suco. Comi o quanto pude.  Eu vou sair daqui a uma hora, tenho que trabalhar. Quer carona? Quero, tenho que passar na editora. Escutamos Legião Urbana, ele ao menos tinha bom gosto. Como está o andamento do livro? Fique despreocupado, estamos resolvendo tudo, provavelmente ele será lançado no início do próximo ano, nós ligaremos. Um sorriso e fui embora, no caminho vi muitas prostitutas vestidas como damas, era um ódio que me consumia e me fazia ter náuseas, eu preciso procurar um médico, preciso de um tratamento. Agora tenho ódio de todas elas. Ei, gatão, que tal hoje? Meu punho levantou acima de sua cabeça e quase esmurrei aquele rosto tão usado e beijado, não consegui, corri para o mais longe possível daquilo. Preciso ir ao médico, tenho que fazer tratamento. Preciso sentar, sento em qualquer lugar. Me perco entre pensamentos, me sufoco em mim e demoro a me achar entre tantas coisas imaginárias enquanto o sol me queima a cara. Preciso de casa.
Estava dormindo no chão infecto e imundo do banheiro quando Carlos veio perturbar a tranqüilidade do apartamento. Seus olhos brilhavam tanto que chegavam a ofuscar o sorriso. Ela acordou e quer falar com você. Eu ainda estava atordoado, não entendi aquele sorriso. Geni falava entre alguns suspiros dolorosos, estávamos apenas eu e ela no quarto. Olá! Oi! Você se sente bem? Sim. Carlos já falou comigo disse que estão se dando bem. É, estamos nos dando bem. Vocês são muito parecidos, gostam das mesmas coisas, pensam da mesma maneira, eu sou prova disso. Aquela fala havia me ensurdecido, não soube o que dizer. A voz dela ficava cada vez mais sussurrada: Quais são as novidades do mundo lá de fora que eu perdi? Carlos já te contou? O quê? Sobre o bebê. Bebê, que bebê? Eu estou grávida? Sorri cinicamente. Responda!, eu estou grávida? Sim, você está grávida. Os seus olhos se banharam na própria água e sua voz engrandeceu, tornou-se quase grito. Desgraçado, desgraçado! Você é o culpado, você é o culpado. Eu não devia ter te visitado, eu não devia. Saia daqui! Mas, Geni... Saia!, não quero ver seu rosto por um tempo, saia daqui! Não havia mais lágrimas em mim para serem choradas. Carlos esperava. E então? Ela está bem. Vou falar com ela. Não, melhor não, ela quer ficar sozinha. O sorriso estampado no rosto de Carlos era inocente, quase infantil, talvez não percebesse o que estava acontecendo. Vamos beber! Ele realmente não fazia ideia do que estava acontecendo. Comprou bebidas numa mercearia e fomos para seu apartamento. Bebemos, quase todo o tempo em silêncio, nos embebedamos. Ele me abraçou, sorri, gargalhamos. Seus olhos eram confusos, ele me puxou e alisou minha cabeça enquanto aproximava o rosto do meu, parou a alguns centímetros. Tentamos falar. Falar o quê? Eu estava consciente ainda, ele também, nossos corpos queimavam. Nos aproximávamos, os lábios encostaram-se – a cena ficou pausada. E agora?, pensávamos. Nos empurrávamos em direção ao outro, os lábios ainda se tocavam, ele tirou a camisa, rasgou a minha, fomos para a cama. Ele estava em cima de mim. Mas, Carlos... minha língua não pôde continuar, havia outra língua em minha boca. Ele tirava a cueca. Eu pensava em correr dali, correr, fugir daquela cena surreal. Não sou gay! Não posso fazer isso. E ele me acariciava. Eu estou com aids, não tenho nada a perder. Ele tinha camisinhas. Nos ajudamos a pôr as camisinhas. Nos afogamos em nós mesmos, sujamos os lençóis com nossos suores, nossas salivas. A bebida era só mais uma desculpa qualquer, sabíamos o que fazíamos, estávamos batizados pelo álcool, isso era o nosso perdão – a própria maldição. Dormi em cima dele. Acordei sozinho. Não havia ninguém no apartamento, tomei banho e fui ao hospital. Carlos não estava lá, Geni dormia. Esperei que acordasse, só pensava nele e tentava esquecer o inesquecível. O que você quer aqui? Geni, nós precisamos conversar. Não, não precisamos. Mas, Geni, você precisa entender, esse filho é do Carlos. Não, não é! Ele é seu filho. E agora toda aquela merda volta! Como você tem certeza? Nos últimos meses só transei com você e Carlos, mas Carlos fez vasectomia – quando o conheci era ator pornô, não podia engravidar as atrizes. Então agora eu serei pai? Sim... Ela mergulhou nas lágrimas e soluços. Carlos está feliz por isso, sempre quis adotar uma criança, ele acredita em milagres e acha que vai ser pai, acho que ele não se importa de eu ter engravidado de outro homem. Carlos, Carlos, Carlos! Por que ele teve que atrapalhar a nossa vida?
- Atrapalhar? Não foi ele quem atrapalhou, foi você, você quem destruiu tudo. Você quem me largou, me deixou como se eu fosse lixo. Você era um poetazinho qualquer, um poetazinho de merda quando te conheci e eu te amava, te amava tanto... Ninguém poderia acreditar em tanto amor. E mesmo que eu não queira, ainda amo. Eu te amo incontrolavelmente e impossivelmente. Todas as noites quero e tento te esquecer, pensar que você nunca existiu, mas é impossível. Por que me trocou por aquelas putas? Por quê? Eu estava grávida, você não sabia, nem percebeu. Eu estava grávida e não tinha nenhum emprego. Mas eu sabia fazer sexo e meu curso de teatro ainda valia, você sempre me achou uma ótima atriz, e acho que sou. Um diretor de filmes eróticos me viu na rua e lembrou de mim, lembrou das peças que fiz, me convidou para participar de um filme – era um bom dinheiro, um bom dinheiro. Foi num desses filmes que conheci Carlos.
- E o bebê?
- Ele morreu, aborto natural. Foi uma desgraça, seria uma menina, uma bela menina.
Eu tentava responder, tentei balbuciar qualquer coisa e as palavras soltas uniram-se para formar a frase indesejada: Eu não te abandonei.
- Não, não abandonou. Mas eu não viveria com tudo aquilo, aquele cheiro infernal de sexo na nossa cama, sempre cheia de putas. Você sempre estava bêbado, sempre drogado – tudo por causa da porra daquele livro.
- Sombras tardias.
- Você e seu novo estilo. Você era um gênio, o gênio artista da nova década, não era assim que os críticos te chamavam? E a cada elogio seu ego crescia, você se entupia ainda mais de drogas e álcool, sempre levando putas para casa. Você me esqueceu, eu não podia continuar. Aposto que você só se deu conta da minha ausência uma semana depois que parti. E, sim, isso é abandono, o mais cruel dos abandonos. Eu te odeio, te odeio.
- Preciso falar uma coisa.
Ela agora resmungava para si trechos de meus poemas e da crítica, ela sempre foi minha maior fã. Você sempre misturando os diálogos, misturando tudo, confundindo os leitores, surpreendendo os críticos, criando a nova arte transgênica e trans-zênica.
- Eu preciso te falar uma coisa, Geni.
Sempre precisando falar o que acha, o que sente, sempre achando que é dono das palavras. Você e os versos sem rimas e sem métrica, os adjuntos sempre fora de ordem e pós-posicionados, você sempre inovando, sensualizando a poesia.
- Eu estou com aids!
Ela parou.
Seu olhar rodou pelo quarto antes de pousar sobre mim. Ela gargalhou como um louco. Você é um brincalhão. E falava qualquer coisa em polonês, com um jarro rosa de flores na mão, apontando para minha direção. Enfermeira, tira esse maluco daqui! Enfermeira! A enfermeira chegou depois de ela jogar o jarro e gritar: Poeta de merda que você é, desgraçado, não sabe nada, não sabe viver, não sabe compor uma vida certa, não sabe compor a própria vida! Cadê a poesia, cadê os poemas? Onde está a poesia nessas horas?
- Eu estou com aids.

             

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Nada

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quinta-feira, 26 de julho de 2012

Nosso amor sonhado

Não são os mesmos sonhos
os sonhos do mundo.
São sonhadas outras vidas atrasadas
de nós,
são outras coisas atrapalhadas
e indefinidas
do mundo sem fim,
o mundo dentre sonhar
- atrapalhado pelo viver e amar.

Nos desfazemos
pela simples necessidade
de uma falsa necessidade
de refazemos
a vida em uma verdade mentirosa,
uma vida gloriosa.

Não esperamos que tudo termine ao acordar,
mas o fazemos por viver,
só acordo para voltar a ver
o nada que é mundo
sem tudo de nós.

Durma e nos sonhe em nosso amor,
nos viva em nossa paixão,
crie a nossa própria invenção:
o nosso único coração

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Corais corporais imorais

Está tudo escuro, mais negro que o próprio preto,
não enxergo nada além de meus olhos,
tateio chão, parede, tateio qualquer coisa
em busca de tua tatuagem escondida em algum desses escuros.

Tateio, tatuo tudo em procura de ti
por mim ou outro qualquer desfeito e encantado
com todos defeitos feitos pelos pensamentos imperfeitos
sobre teu peito, teu corpo tão perfeito.

Na cama, sob lençóis tão brancos e alvos
jaz aquela ideia antiga e obscura
da procura de nossos abraços melados entre beijos,
leitura de nós, nossos olhados beijados por todos pecados
aperfeiçoados e dados aos amados nunca casados.

Me resguardo parado a te observar
pela frecha da vida cotidiana, insana
tu me chamas entre as chamas para, com lama,
destruir o fogo morno em que cantas tantas façanhas
dos infelizes e infiéis índios indispostos a indagar
qualquer que seja a independência, ínfima e indireta
em todos próprios íntimos infinitos.

Do nosso quarto ouço todo o barulho
do bagulho de toda uma vida lá fora,
a rua que vive para a lua, nua entre suas duas estrelas agora
expectadoras e oradoras do enorme avião que passa sobre chão
e não se mãos dos guardiões das mineradoras tolas desbravadoras.

No teu  corpo vejo imagens formando-se acima dum mundo novo,
sinto todos os sentidos acenando e falando, de forma irregular, sob mar.

Pelos prazeres nos vem uma louca sincronia de toda poesia,
de depressão, de alegria de coração,
nos ouve uma sinfonia sem vida real ou moral.
Rolamos, enrolamo-nos nas peles secundárias,
gastas entre diárias sem valor e sem amor, mas comunitárias e salafrárias.

Nos ouço pelo espelho do banheiro e vejo pouco do muito dentre nós,
paro e peço que pare por um instante desconfortante
para que, diante do teu semblante, eu escreva
dentre tantos outros ainda apaixonantes
mais um destes poemas errantes

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Acidente pornográfico - Capítulo III, Meus escorpiões


           Mês de junho, mês do meu aniversário. Qual o dia? Sete talvez. Não, é amanhã. Será que vou ganhar algum presente? Talvez ninguém lembre, Geni sempre lembra – mas ela já deu seu presente. Provavelmente agora os amigos voltem, essa é a hora, o livro já está sendo editado. Vou voltar a ganhar dinheiro. Alô, Miguel? Ei, apareça por aqui amanhã, queremos festejar teu aniversário. Ele não esperou resposta, mas ao menos lembrou. O ponteiro parou, preciso comprar pilha para o relógio, não hoje, amanhã – já é tarde e eu preciso dormir, mas preciso também assistir a esse filme (há tempos que não assisto a filmes pornôs). Vânia Boner é maravilhosa! Durmo como nunca dormi antes: tranquilamente. Sonhos, mil sonhos, mil atrizes, mil livros, livros! Acordo, tenho que falar com Alleri. Hoje é dia de folga, Dantas Alleri não está; volto ao apartamento, ligo para Miguel. Nós estamos te esperando. Além de Miguel havia Davi e Carlos (outro Carlos) – senador federal e amigo de infância de Miguel. Aluguei um bar só para nós, e uma limusine. Nunca havia entrado em uma limusine. Conversamos e bebemos. Chegamos ao bar. Carlos descreve sua infância, a juventude, garotas com quem transou. Chegam as garotas. A música começa. Antes que Eliane – a loira de olhos verdes – termine o strip-teaser, Carlos já está com o pênis de fora e ela o masturba; Davi diz que precisa sair e vai embora; Miguel se agarra a uma morena.  Eu me viro para a garçonete: Me vê outro drinque, por favor. É você quem está fazendo aniversário hoje? Sim, prazer. Muito prazer. Ela tira o sutiã e esfrega os mamilos em meu rosto. Não me excito, ela passa as mãos por minha calça, abre o zíper. Não, por favor. Ela olha profundamente no fundo de meus olhos, franze o cenho. Eu estou sem camisinhas. Eu tenho camisinhas, espera. Você ainda não entendeu? Ela veste o sutiã. Me dá mais um drinque. Eu não sei se a culpada era Geni, não parava de pensar nela. No chão, todo mundo pro chão! Vai, porra! Pensei que fosse polícia, eram bandidos, só um estava com a cara exposta, não contei quantos eram – uns seis. Antes que eu pudesse pensar em mais alguma coisa, eles cobriram minha cara. Fiquem caladas, vamos levar só eles! Calem a boca! Fui arrastado, levado pelo braço. Miguel? Carlos? Ninguém respondeu. Faz esse filho da puta calar a boca, senti uma coronhada: desmaiei. Calma, amor, foi tudo só um sonho, só mais um sonho, eu estou aqui – era o sorriso de Geni. Você está bem, pode ficar calmo. Eu sorri – ela gritou – Acorda, porra!
            A água era fria: Quem é tu? Eu não sou nada. Acha que eu estou brincando, irmão? Cara, eu não tenho nada. Tu é amigo do Carlos, deve ser tão rico quanto ele. Fiquei paralisado, os olhos dele eram coloridos, profundos e apaixonantes. Qual seu nome, garoto ? Fala sério, irmão, eu não estou brincando não, irmão! Ele me deu um soco na cara, senti o sangue escorrer do meu nariz. Tu vai ligar pra alguém que conhece e dizer que foi seqüestrado, estendeu a mão com o meu celular. Eu estou te dizendo: “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada”. Qual é? Deu pra fazer poesia agora? Eu sou poeta, não conheço ninguém, não conheço nem a mim mesmo. Eu sou poeta. Cobriu meu rosto novamente, desmaiei com o soco. Estava à beira de uma rodovia quando acordei, era noite. Um carro passa, dou sinal, não para. Caminho em qualquer direção. Estou com fome, o rosto dói. Quase amanhece agora, vejo um posto alguns quilômetros à frente, tento correr, tropeço, continuo, caio, não consigo me levantar, rastejo alguns duzentos metros, meu braço está arranhado. Levanto-me e vou caminhando (tropeçando). Não há ninguém no posto, há um orelhão que não presta. Sento num canto sujo, um cachorro late. Chega uma caminhonete velha. Um homem sai e me joga uma moeda. Eu não quero dinheiro, não sou mendigo, quero ajuda, fui seqüestrado, eles levaram meu celular. Quando levanto a cabeça vejo um homem de barba e cabelo brancos. Meu Deus, você está péssimo! Me dá a mão, vou te ajudar. Sento no banco de passageiro, todo o carro fede à bosta de gado. Durmo por um instante. Lúcia! Eu trouxe um amigo, ele precisa de ajuda, está ferido. Não consigo abrir os olhos. Vamos lá, amigo. Me apoio no braço do fazendeiro para sair do carro.
            Estou numa cama. Bom dia, amigo, você está melhor? Sim, obrigado pela ajuda. Essa é minha família: minha mulher, Lúcia e minha filha, Maria. Prazer, moço. Prazer, Maria. Ela sorri de um jeito como nunca vi. Já de noite ele recebe um telefonema. Alô, Carlos, filho? Maria estava ao meu lado. Você tem um irmão? Sim, mas ele não mora conosco, é casado, mora na cidade grande. Qual o nome da esposa? Geni. Geni! Eu preciso voltar. Ele desliga o telefone, me levanto. Moço, você tem que ficar deitado. Ei, onde você vai? Eu já estou bem, posso seguir meu caminho. Não, eu deixo você em casa. Não precisa. Eu insisto. Me leve até a rodoviária então, não quero lhe dar muito trabalho.Vamos em silêncio, para melhor ouvir o solo do motor. Não me despedi de Maria, a tão linda Maria. Chegamos na rodoviária. Tome, ele me estende vinte reais. Não, eu não posso aceitar. Você tem que aceitar, precisa comer. Pego o dinheiro e saio sem agradecer. Tchau. Até mais, se cuide, rapaz. Preciso voltar para casa, mas como? Cadê meu celular? Merda! Vou ter de caminhar, passo por um restaurante: A TV ligada [ O senador Carlos continua desaparecido, a polícia diz encontrar indícios de um seqüestro]. Já são quase seis da noite e ainda não comi nada, compro três salgados e os devoro como um animal louco. Agora são sete e meia, falta pouco para chegar em casa, mas preciso descansar, não consigo continuar. Durmo no banco da praça, imundo de bundas. Acordo e ainda é escuro, continuo o caminho sem titubear até chegar ao apartamento, ouço o som de sexo no apartamento do vizinho da direita e choro de criança no da esquerda – são as conseqüências. No chão há um bilhete de Geni: Parabéns, te amo como só nós sabemos amar. E sua assinatura. Ela lembrou. Preciso passar na editora, antes vou tomar um banho. O apartamento fede ainda ao mesmo cheiro – gosto disso, sei que não estou sonhando. Me barbeio e o espelho rachado mostra um rosto com um roxo ocular esquerdo e dois arranhões próximos ao nariz. Não há água, não paguei a conta. Há perfume, serve. Saio. Ainda tenho dez reais, com os meus últimos noventa reais pago o aluguel do apartamento. Alleri, me escuta! Você está querendo me dizer que foi sequestrado com o senador e quer que eu acredite? Sim e eles levaram meu celular e os cinco reais que tinha, você é a única pessoa que conheço e pode me ajudar. Mas antes você precisa dar um depoimento na delegacia, certo? Sim, claro.
            Tudo resolvido, só me resta ver Geni. O velho porteiro me olha com desprezo e tristeza: Não senhor, Geni não está aqui, ela está no hospital, junto com seu Carlos. O quê? O quê aconteceu? Foi um acidente de carro. E quando isso aconteceu? Ontem, senhor. Qual o hospital em que ela está? É só o senhor andar dois quarteirões à direita. Obrigado. A secretária tem grandes silicones, é loira, Botox:  Com licença, você pode me dizer onde está Geni? Geni Buarque, sim. Ela não está recebendo visitas. Carlos me vê, tento disfarçar. O que está fazendo aqui? Preciso ver Geni, como ela está. Você não pode entrar. Eu sei. Sento. Penso em chorar, mas só consigo encarar e odiar Carlos. Passam três horas como se fosse um dia. Eu pergunto: Como vocês se conheceram? Do que importa? Eu só quero saber. Isso não te interessa. Interessa sim. Não, você não precisa saber. Como foi o acidente? Eu não sei bem, eu estava trabalhando, ela havia ido ao shopping e na volta... O médico se aproxima: Ela precisa de sangue, está com uma hemorragia interna. Eu posso doar, tenho o mesmo tipo sanguíneo dela. Carlos me encara, como se meu sangue não pudesse misturar-se ao dela. Ela fraturou a perna e o braço direitos. Mas não precisa se preocupar com o bebê, está tudo bem com o feto. Bebê? Sim, seu filho, ela está grávida de três meses ao que parece. Eu sou pai? Como assim? Uma raiva tremenda me subiu pelo corpo, a vontade era de espancá-lo até que cuspisse todo o sangue. A cara dele não era agradável, não guardava uma expressão de alegria ou algo do tipo, parecia confuso com uma expressão de estranhamento e surpresa, sem resquício de amor paternal. Talvez nem ele soubesse, uma lágrima me escorreu pelo rosto sem querer, minha barriga roncava, olhei para os lados procurando algo para me segurar ou para bater na cabeça de Carlos. Me sentei, sem força nas pernas. Falei involuntariamente: Você tem certeza, doutor? Sim, certeza absoluta. Os olhos de Carlos continuavam estáticos: Mas, doutor, eu não posso ter filhos.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Não há mais chances,
nos perdemos na floresta.
Por onde voltar?
Não há mais nada além de nós e o tudo daqui,
vamos ficar aqui
partir ao infinito e esquecer de voltar,
vamos, basta segurar minha mão
e libertar teu coração

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Suruba onanista - Capítulo II, Meus Escorpiões


            Duas da manhã, estava bêbado – com duas camisinhas no bolso. A insônia estava agarrada a mim e gargalhava todo tipo de coisa sobre Geni e Carlos. Foi-se a madrugada, dei bom-dia ao sol antes de dormir. Dormi e acho que sonhei com algo, foi um sonho erótico com Geni, não lembro bem. Eram dez da manhã, a campainha gritava frenética. Eu mesmo não agüentava meu hálito, vomitei-o. Eu sei que você está aí. Era Geni: Já vou, amor. Gargarejei e engoli a água imunda de cerveja e sono. Quando abro a porta, ela – O que foi que te deu? Que história é essa de cuspir na cara do Carlos?. Sorri – O que é que ele estava fazendo lá? Aquele cara está sempre atrás de mim, pede pra ele parar. Como assim? Aquele é o trabalho dele! Os olhos dela brilhavam feito lua, o batom dela era vermelho pornográfico, seu hálito estava melhor que o meu. Geni, eu preciso de você de volta. Ela parou de resmungar. O quê? Não tem mais dinheiro para pagar as putas? – Não, eu te amo. Todas essas garotas não são nada, eu tento sentir nelas o mesmo que sentia em ti, mas... Minha boca foi atraída à dela, senti o cheiro de vermelho, ela não recuou. Puxei-a, afundei minha língua na dela, gosto de Colgate, de Geni. Eu pensei estar sonhando e parei. A porta estava fechada, ela ofegava. Não, não era sonho. Abracei-a quase a esmagando. Ela tentou me esmagar também – caímos no chão, passei os lábios pelo pescoço alvo antes de levantar-se e sussurrar um grito: Não há mais nós, eu amo o Carlos. Mas eu te amo, Geni! Eu sei, eu sei, mas você sabe que eu não posso voltar para aquilo tudo, eu não quero lembrar, apesar de continuar a te amar, então – por favor – me esqueça! Ela correu, não conseguiu abrir a porta, a maçaneta estava suja e lisa. Eu girei a maçaneta e escancarei o mundo lá de fora, vi uma lágrima lhe escorrer desde o olho até seu decote. Deixei a porta aberta, não havia mais porquê fechá-la. Agora poderia até me jogar pela janela, mas era um jeito muito idiota de se morrer.Os cigarros acabaram, fumei o ar urbano mesmo – não havia muita diferença, Num canto do quarto havia uma pilha de livros, meus livros (Sonhos Tardios); eles sim mereciam ser jogados pela janela – joguei uns cinco e fui tomar banho. Já pronto, saí. Talvez encontrasse algum destino pelo caminho.
            Lá fora quase anoitecia, meus pés estavam agora enfurnados na areia e o mar dançava só pra mim. Lembrei:
                                    “Já não há mar
                                      Se eu não te amar,
                                      Não há a vida sem minha querida,
                                      Não há nada
                                      Sem a minha amada”.
É um dos meus poemas de Sombras Tardias, o poema menos elogiado do livro. O celular toca, é Geni: Tem um homem aqui atrás de você, um tal de Dantas Alleri. Dantas Alleri, de cabelo branco e orelhas de lobo? Sim. É o editor-chefe da Alleri Editora – editora mais prestigiada do país. Disse para ele ir à sua casa. Ela desliga, volto correndo ao apartamento e chego em vinte e oito minutos, fico tonto e vomito o cansaço na privada, a descarga não está prestando, o banheiro cheira a fezes. Dantas me chama pelo nome pela porta aberta. Vou até ele, cumprimento-o como alguém respeitável. Você tem mais poemas como aqueles de Sombras Tardias? Tenho uns sete. Se você me entregar um livro de poesia até o final deste mês, nós o publicamos, mas queremos um sucesso tão grande quanto o seu livro de estréia. Não quer entrar? Não, obrigado, já vou. Até mais. Retribuo o sorriso sarcástico. Na TV não há nada além de nada. Ao som do noticiário tento escrever qualquer coisa, não lembro se sou destro ou canhoto. Rabisco qualquer coisa e aquilo fica parecendo com os cabelos de Geni. Penso em um poema, escrevo-o com a direita; outro poema, com a esquerda – mais outro com a esquerda. São dez agora. Durmo ali mesmo, sobre os livros empoeirados.
            Acordo com outro poema, jogo tudo para o papel, releio. Vou ao banheiro mijar, a descarga não funciona e aquela mistura continua lá. Volto a escrever outro poema de esquerda, seguido de um de direita. Escrevo mais muitos poemas. Preciso de um computador. Não sei que horas são, está quente, ainda estou com fome. São mais de vinte. Nenhum está tão bom quanto Sombras, saio para espairecer. Você que é o autor de Sombras Tardias? Sim. Me dá um autógrafo? As pessoas me reconhecem agora, me barbeei. Talvez até Geni me achasse bonito se me visse agora, sem aquela barba suja na cara. E ela está ali, sentada no banco. Geni! Não, não é ela. Onde está ela agora?
            Olhe, dona Geni disse que não queria mais o senhor aqui. Liga pra ela então, diz que é urgente. Dona Geni...? Fala que é sobre o livro. Um minuto e quarenta e dois segundos se passam. Pode subir. Obrigado. O elevador demora, ele fede a Carlos. Geni demora a abrir a porta depois que toco a campainha. Oi, Geni, o Carlos está aí? Não; vai, fala logo o que você quer. Não vai me convidar a entrar? O seu olhar pesa, ela hesita e abre a porta como um convite. Eu só vim dizer que preciso do teu amor de volta, só sei escrever com ele, sobre ele. Você é um poeta, é muito inteligente – não precisa de mim. Preciso. E aqueles prêmios todos? Minha poesia é tua, feita toda para ti. Por favor, só uma noite – é o bastante para escrever um livro. Não!; É melhor você ir, o Carlos deve chegar daqui a pouco. Que chegue então! Em alguns minutos eu já estava em casa, me masturbando – como se fosse Geni comigo. Com as mãos ainda sujas escrevi dois poemas e dormi. Eram sete e quarenta quando acordei com a mão esquerda ainda melada e grudenta de mim, lavei as mãos, escovei os dentes. Alô, Dantas? Sim. Estou com trinta e três poemas prontos. Traga-os.
            Ao final do dia recebo um telefonema do tradutor: Os poemas estão uma merda. Você tem outra chance. Só durmo e sonho com nada. Acordo com os tiros, morreram três moleques do morro. Seu João do bar também levou um tiro e está no hospital. Desço para ver se não levo um tiro também. Uma das garotas do bairro pergunta se não quero me divertir. Claro que sim, posso te chamar de Geni? Muito prazer, meu nome é Geni. Ela ria tanto quanto eu na cama. No escuro eu nem sabia o que beijava, se eram seus seios ou suas costas, sua boca ou sua vagina. Ela tinha uma voz doce. Geni? Sim, amor, estou aqui. Nos aprofundamos na gargalhada do outro. Ela já estava se arrumando para ir embora, paguei os cinqüenta reais. Você tem amigos? Acho que não, mas tenho camisinhas. Ela sorriu e falou com aquela voz doce: Tchau, amor. Tchau, Geni.
            Uma semana se passou e só o ponteiro do relógio se movia, eu continuei parado, consertei a descarga – o apartamento só cheirava a urina mesmo agora – e eu olhava o céu do meu apartamento.
            Estava lendo Alphonsus Guimaraens quando percebi que não fumava nem bebia há mais de um mês e alguém bateu à porta. Geni? Eu também preciso de você por uma noite, só por uma noite. Gargalhei estridente, mas parei quando vi os seus olhos marejados, ela sorriu e alisou meus cabelos como na nossa primeira vez e, como no primeiro beijo, ela me puxou e beijou minha bochecha antes de colar seus lábios nos meus, despimo-nos de tudo, de qualquer roupa e pensamento. E não foi uma transa como com todas outras, foi amor. Geni! Como só ela. Me lambuzei, nos lambuzamos e durante toda a noite apenas uma frase a cama escutou de Geni, entre os gemidos: Ainda te amo tanto. Apertei-a e senti seus peitos seios em meus peitos, senti sua língua percorrer pelo meu corpo, enquanto minha mão pousava naqueles cabelos castanhos e tão estranhos ao ponto de ser outra cor – quase a cor do pecado; penetramos em nós mesmos, nos descobrimos. Dormimos abraçados, quando acordei estava sem roupa e sem Geni. Escrevi sem roupa mesmo, foi um dia e meio somente de poesia. Tenho trinta e dois novos poemas. Essa é a sua última chance. Me visto, vou de moto-táxi à editora, enquanto subo as escadas um dos poemas me cai, pesco-o novamente. Amanhã ligamos... Fui ao bar, seu João ainda estava em repouso, quem atendeu foi seu filho Antônio – moço bonito e inteligente –, havia lido meu livro. Amei seu livro, você é um ótimo poeta, parabéns! Voltei a fumar e beber. Não me embebedei, voltei para casa sóbrio, no caminho tropecei no corpo de um velho. Às dez da manhã eu estava na farmácia, comprando caminhas, comprei algumas com gosto de morango. Alleri ligou: Próxima semana nós começamos a editar o livro.
                

sábado, 14 de julho de 2012

Para delirar, para viciar
por cima vigiar
um pequeno delírio
serve de colírio
e uma flor-do-lírio
serve para o martírio.

Mas não sou louco
não sou nem um pouco,
a loucura delirante
jaz distante
- pois sou louco -
concordo um pouco.
Enquanto afirmo a minha sanidade
perdida na cidade
entre todas as verdades]
afogada em tudo nada
perto de uma madrugada

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Não cuide de teus versos,
maltrate-os.
Não corrija os teus versos,
rasure-os.
Não lembre de teus poemas,
esqueça-os.
Não laves nem enxagues,
deixe o verso arrebentar
e escreva (sem medo),
deixa o poema dançar,
deixa a poesia te usar.
E quando o poema estiver pronto pra voar
abandone-o
Minhas palavras estão sujas
de ti, de mim mesmo.
Estão cobertas de paixão
                        - não de razão.
Estão ao redor do tudo
que somos nós
(leitor e autor)
Eu sonhei
que tive um sonho
em que tu sonhavas
outro sonho
que não o teu.
E sonhamos então
o mesmo sonho,
a mesma paixão

Mundo de palavras

Eu queria fazer crescer as palavras,
queria que cada uma brotasse diariamente
nos vasos daqui de casa.
Queria uma árvore de palavras no jardim,
nuvens de letras no céu
e um mar cheio de versos
pra nos banhar
de amor
O céu, o mar,
o mundo, as rosas.
A TV, eu - o computador
de tudo ou nada;

Faço, desfaço,
acordo, caminho, corro
- trabalho.

Substantivos e adjetivos,
verbos e orações,
eu e poesia

(Não repare,
eu não tinha o que escrever,
só tinha o que viver)

Meu eu

Eu queria ter um lugar pra chamar de meu,
ter alguém pra chamar de meu.
Queria voltar para o meu lar,
mas ele não está mais lá
e eu busco um outro tão igual
onde eu possa ter
um eu que possa chamar de meu

Buraco negro (estrela negra)

Deflagro-me flagrante em fragrâncias,
aglomero restos de mim,
misturo minhas palavras em ânsias.
Meus óculos estão imundos,
vejo um mundo sujo,
já não enxergo meu reflexo.
Fujo de minha sombra desformada,
vou me desintegrando a cada instante
e reintegrando o universo
em um único ponto incomum
preso sob o mar,
perdido em lugar algum
ou algum lugar

Doente viral

É melhor você me esquecer,
é melhor você se afastar.
Eu estou contaminado,
posso te matar,
não quero te contaminar.
é melhor você ir,
meu amor pode te adoecer.
Eu adoeci de outros amores...
agora estou morrendo,
o sexo me matou

Homem ferido

Eu durmo,
as baratas passeiam entre meu sangue,
o chão imundo me varre
a um mundo de datas presas a Paul-Sartre.
Meus livros não servem mais,
meus poemas decorados já não trazem paz
a meu corpo fuzilado.
Minha força não é o bastante para chorar,
só me resta ouvir os soldados a matar,
só me resta morrer,
mas nem isso eu consigo.
A guerra acontece lá fora
e eu aqui, me preocupando comigo,
pensando em temas e horas,
rejeitando o perigo de continuar vivo.
Já não penso, já não sou,
não existo,
agora só posso
esperar que algum covarde
me mate de verdade

É só mais uma guerra

Não importa se estamos feridos,
se estamos destruídos.
Não importa se estamos morrendo,
tudo deve continuar acontecendo.
Não importam as nossas vidas,
eles nunca sentem as feridas.
Não importam os tiros,
eles não escutam.
Não importam os gritos,
não sabem se estamos vivos.
Nada importa,
afinal é só mais uma guerra.

Não escutam as metralhadoras,
não veem as rosas murcharem,
não têm camas ameaçadoras;
ouvem os pássaros cantarem,
vão de terra em terra,
brincam com jogos de guerra.

Nós vamos sofrer, nós vamos morrer
e eles vão nos esquecer,
vão continuar a brincar,
passear e comprar.
Vão continuar e vão nos largar.

E é nessa guerra que temos de sobreviver,
contra eles temos que viver,
mas nada disso podemos fazer.
Somos fracos, perdidos,
somos vendidos, iludidos.
Ejá não importa se Ele acerta ou erra,
estamos por nós, desprotegidos
 afinal - é só mais uma guerra
Talvez o maior triunfo de um escritor,
de um poetas, um artista
seja sentir sem ter sentido,
fazer o que nunca foi feito,
ver o que não viu,
ser o que nunca foi
e assim,
ser, ver, fazer
e convencer

Muito obrigado!

          Acabei de dar um olhada nas estatísticas e queria agradecer muito a todos que leem o que escrevo. O texto Três Orgasmos é, até agora, o mais acessado de todo o blog - com vinte uma visualizações de página. E hoje o blog teve o recorde de visualizações - cinquenta e uma visualizações. Eu estou muito feliz e meus textos também. Muito obrigado e podem esperar por textos novos. Eu estou tendo muito tempo para produzir e centenas de texto estão por vir. Abraço em todos e deixem um comentário caso leiam este agradecimento. Muito obrigado!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Eu espero desespero


Talvez a vida não me reserve mais nada,
pois eu já abusei dela o quanto pude
e fiz o que quis na madrugada.
É assim, sempre esperando que tudo mude,
que eu caminho, canto, vivo e danço
a ópera desafinada de minha alma;
por isso me permito e me lanço
na violência agitada dessa calma,
esperando que um milagre aconteça,
esperando que o mundo me esqueça

Sociável

Eles são tão reais, tão normais,
é isso que me incomoda:
para eles só existe a realidade.
Vivem em busca da felicidade,
em busca de milagres,
não percebem que é tudo tão claro,
tudo é tão simples.
Não sabem, não vivem, não entendem.
Com seus conceitos e preconceitos
descriminam ideias,
opõem-se, impõem-se.
Por isso não gosto deles, são tão normais

Etos inane

Meu ser meão, me coração:
a poesia indelével, ineludível.
Orço minha vida inenarrável,
opugno-me sempre, desfavorável.
Em meu opúsculo nada há
além de imaginações, orações
esquecidas em minaretes,
esquecidas durante micções.
Entre lenocínios vejo o mundo
em palavras lesivas.
O mundo me estupora, inculpado,
esvazio-me em inculturas,
busco algo mais, algo novo em incunábulos.
Nada encontro, nada sou,
nada escrevo,
apenas esvaneço meu etos,
esvurmo a ferida inane

Sentir nada

Estava rouca,
ninguém me ouvia.
Estava surda,
não ouvia ninguém.
Estava pálida,
ninguém me via.
Estava míope
e não via também.
Estava morta,
não existia

Poesia como sou

A poesia como sou
não é o que me vem,
é algo mais que me mata,
sou algo mais que me vive.
Sou assim sem rima,
eu é, mas a poesia não sou
Já conheci todo tipo de gente,
gente normal,
gente diferente,
euclidianos,
protestantes,
católicos,
ateus,
gente que não conhece Mozart,
gente que conhece,
gente que leu,
gente que nunca leu Caio Fernando Abreu,
gente assim,
feita pra viver,
pra morrer.
Heterossexuais,
homossexuais,
                      bissexuais.
Gente que canta,
que dança.
Já conheci militares, civis.
Inteligentes, imbecis,
todo tipo de gente já conheci

terça-feira, 10 de julho de 2012

Tortura de poema

A página está em branco,
ainda não sujei a folha do caderno
e ela - virgem -
chama por mim, grita para que eu a use,
para que a desgaste
e ponha tudo de mim.
Eu me lambuzo,
a estupro,
ela cala, chora algumas palavras

Mais um poema daqueles

Eu não sei o que dizer,
não sei o que falar,
não sei o que pensar
pra sonhar.
Não tenho nada pra fazer
por você.
Só posso te amar,
só posso te beijar,
só posso te cantar
assim
e enfim, te criar,
para entre os braços meus,
sob os lençóis te acariciar.
Quando o homem te olhou
não soube o que dizer,
apenas te abracei,
apenas pra chorar
e encostado a ti, voar
para algum outro lugar
além do que cheguei, além do que posso escrever
por você

Caution!

            O texto Três Orgasmos terá continuação e toda segunda-feira será publicado um conto - assim espero - no mesmo contexto. A série se chamará "Meus escorpiões", com duração indeterminada. Peço o favor de deixarem comentários, qualquer reclamação, pedido, dúvida, desabafo, et cétera - mas comente...

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Três orgasmos - Capítulo I, Meus Escorpiões

          Hoje é sexta, amanhã: sábado, depois é domingo. Droga. Ainda não tenho programa para hoje, os amigos não ligaram, não se importaram, me esqueceram por hoje. Eles não precisam mais de mim, eu ainda preciso deles, vou buscá-los. Saio do escritório: "Boa noite", ninguém responde, ninguém me vê. O carro é velho, fede a cidade, fede a trabalho. Fede a trânsito, esse trânsito infernal. Que porra é essa? Passa por cima! Música não há, roubaram o tocador, mas tenho a sinfonia das buzinas - parece bebês chorando -, tenho este espetáculo em que todos cantam, atuam, dançam, gritam. O sinal está vermelho, verde, amarelo. Já não sei a cor, azul? As luzes, os bares, a sujeira, tudo me confunde.
          Os bares me chamam, os motéis me perguntam: Por que está sem acompanhante?, me oferecem uma. Uma boate, é aí que vou ficar. Tenho que estacionar, onde? Preciso me divertir, beber, sair de mim. Passo por ruas procurando vagas, passo por mulheres, preciso de uma. Estaciono meu olhar, paro, desço. O som é estridente, talvez me ensurdeça. A cor vermelha imita as chamas do inferno, a fumaça: as nuvens. Um beijo - há quanto tempo não sinto - me beija, outro beijo, outra língua, homem ou mulher. Não importa agora, meus amigos me largaram! Estou só, ninguém me vê, não existo sozinho, posso fazer o que quiser, o que não puder. Seios, pernas, mãos, estão todos unidos numa corrente elétrica de desgosto diabólico, nervoso.
          Eu grito, penso, ninguém escuta. Tento me escutar, é impossível. Então estou no banheiro, de frente para o espelho, com o cinto na mão - a fivela quebrou, alguém puxou -, saio com a calça molhada de mijo. Cansei do lugar, a bebida não presta, o cigarro fede a nada. Antes de sair me arrancam a calça, rasgam a blusa. Saio de cueca, a rua, os prédios e cortinas, janelas, carros, pessoas, mundo, sexo. Fujo para o carro, deito, tento dormir, só me falta alguém para morder-me a orelha, preciso dela. Geni, por que se foi, por que me deixou? Acho que estava grávida quando partiu, não tínhamos dinheiro para camisinha. A gasolina acaba no meio do caminho, desço, buzinam. E daí? Caminho pela calçada, um cachorro imundo, triste e doente, me dá boa-noite, pergunto se não é bom-dia.
          Continuo caminhando. Aqui é o apartamento de Geni, talvez esteja na cama com Carlos, não dormindo, claro, hoje é sexta. O porteiro me conhece, Geni não está, Carlos está?, Está sim, o senhor pode subir. A campainha quase não tem mais som. Ele está molhado, de toalha. O que você quer? Geni não está. Não quero falar com ela, quero falar com você, dizer como te odeio quando sinto tua existência, quero bater é em você, não em Geni, você tem dinheiro para as camisinhas, quero falar o quanto preciso dela de volta, o quanto morro a cada noite sem rir por ela, sem viver e morrer ao corpo dela, quero falar com você. Mas não falei nada, apenas virei as costas e fui para casa. Minha casa é longe, Geni sabe onde fica. Onde estaria Geni? O mesmo cachorro não responde quando pergunto as horas. E aí, cem reais e pode fazer o quiser, eu sei usar muito bem a língua, quer provar garanhão? Não, hoje não, segunda talvez. Hoje quero me estrangular junto de Geni, ou pelo menos alguém parecido.
          Um homem ou mulher, tanto faz, basta dizer que preciso possuir, sorrir e não ter dinheiro para comprar camisinhas, basta isso. Um assalto, faço de conta que não vi, um drogado - não olho nos olhos; um atropelado, não fechou os olhos. Um travesti: E aí, garotão, quer me possuir? É só sorrir, vem pra mim, que hoje eu não tenho dinheiro para camisinhas. Descubro que não era travesti, era apenas uma mulher, sem pênis, sem testículos. Ela só tinha uma voz grossa, nada mais, sorria como mulher, gemia como Geni, não cobrou, se foi. Como cheguei aqui em casa? Dormi.
           É domingo, o sol me queima os olhos, estou banhado de suor, minhas pernas estão enlameadas de esperma, o cigarro ainda jogado ao lado do cinzeiro. Três tiros ouvi, sirenes. O começo de um domingo. Não tem café, o leite azedou, o gás acabou, o ovo apodreceu. Preciso de um banho, não sai água do chuveiro ou da torneira. A campainha toca. Geni? Carlos me disse que você esteve lá, o que você queria? Puxo-a, abraço-a, ela me empurra. O que é isso? Você está louco? Geni, eu preciso de você, volta pra cá, vem, por favor, só mais uma vez, agora eu tenho dinheiro para as camisinhas. Você está fedendo, precisa de um banho. A água acabou. Ela pensa um pouco, Vamos lá pra casa então. Geni!, ela ainda me ama.
          O apartamento está vazio, Carlos tinha ido à academia. O banheiro é ali, tem toalha limpa lá. A água é fria, parece gelo, me limpo. Ela está na cozinha, preparando o almoço, vejo a marca da calcinha sob a calça. Abraço-a. Eu te trouxe só para tomar banho; tiro a toalha. Ela me dá um tapa, me oferece roupas do Carlos, visto-as. Onde está seu carro? Na oficina. Já em casa ligo a televisão, não há nada de bom. Anoitece, estou com fome, pego o dinheiro que Geni deixou, tranco a porta. Lá fora está quente, busco meus amigos, onde estão? Passo horas buscando-os, até me lembrar que não tenho amigos e ter que pagar essa mulher de trinta reais, deitada em minha cama, com a boca suja de mim.
          Acordo, é segunda, tenho que voltar a trabalhar, Geni me liga, me pergunta se a faxineira fez um bom serviço, repondo que sim, eu a usei como usava Geni. Hoje sai água do chuveiro, mas não tem xampu e o sabonete está pela metade. Vou para o trabalho a pé. Chego atrasado. Sou demitido. Vou atrás de Geni, ela não está. Durmo na rua, em frente ao prédio, espero-a, durmo para não acordar nunca mais.
          Sono sem sonhos.
          Acordo com o sol gritando, uma barata sobe pela minha mão, esmago-a. Ainda confuso vejo Geni saindo do prédio. Ela também me vê. O que você está fazendo aqui?, sorrio. Esperando você. Eu tinha mesmo que falar contigo, te arranjei um emprego melhor, toma. Ela joga um cartão, eu estava  sem óculos, não conseguia ler. Quando levantei a cabeça, ela já havia dado as costas. Fui para o meu apartamento.
          Cada vez mais podre, cada vez menos lugar. Pus os óculos, tirei as calças. Li o cartão, era o cartão de uma editora, não a conhecia. No outro dia estava fazendo a entrevista de emprego. Fui contratado, eu era o mais novo revisor. Pela primeira vez trabalharia com o que me formei. Meu novo emprego durou três horas, durou até eu ver o Carlos, era o editor, cuspi na cara dele e saí. Fui beber, me masturbar em um banheiro público, eu precisava comemorar.

Dona Formosa

        Lindo, ele era lindo, perfeito. Nunca havia visto tão lindo como aquele, de um loiro magnífico, angelical. A luz parecia ser apenas vento diante o brilho daqueles fios.
        Todos os dias, no mesmo horário, no mesmo ônibus eu via aquele cabelo. A cada dia a paixão crescia, alimentada por aquele brilho. Mas jamais vi o rosto da dona formosa de cabelos tão sedosos, que nunca cheguei a tocar.
        Era um amor mais que platônico, afinal a paixão nasceu do cabelo - não havia nada que eu amasse mais que aquele cabelo.

        Havia uma mulher, não sei quem de não sei onde, que mandava cartas semanalmente a mim, descrevendo seu amor, dizia-se minha admiradora secreta. Não liguei para esse fato, pois nunca nada nem ninguém despertaria amor maior que o meu amor por aqueles sedosos fios.
        Ela estava lá, sentada no mesmo lugar - os cabelos eram jogados para trás pelo vento que entrava correndo pela janela. O assento ao seu lado estava vago. Pensei em sentar-me ali, mas senti um receio, um medo de descobrir o rosto por baixo daqueles cabelos. Sentei no assento anterior.
        O cheiro daqueles fios passava correndo pelo meu nariz, aquilo chegava a me dar um êxtase incomensurável, um prazer divino.
        Já estava perto o momento de ela descer do ônibus.  quando ela levantou deixou cair um pedaço de papel. A princípio hesitei em pegar o papel.
        Esperei.
        Involuntariamente aguachei-me e agarrei o papel, pus no bolso. Em casa olhei o papel e, para minha surpresa, naquele papel estavam desenhadas letras tais quais as letras das cartas enviadas pela "admiradora secreta", meus olhos brilharam, um brilho como o brilho daquele cabelo.
        Inesperado.
        Então ela também compartilhava da mesma paixão!
        Dia seguinte:
        Não a vi no ônibus..
        Outro dia:
        Ela não estava no ônibus.
        Dia após dia:
        Não via brilho nenhum parecido com o cabelo dela.
     
        Vendo a carta perdida percebi que no canto da folha havia o endereço da dona formosa.
        Enviei-lhe uma carta, descrevi todo o meu amor.
        No outro dia:
        Não a vi no ônibus.
        ...
        Sempre que olhava meu reflexo percebia algo de diferente em mim. Passadas três semanas observei meu cabelo diferenciar-se de si mesmo ao passar dos dias. Estavam ficando tão sedosos, tão brilhosos, de um brilho monumental e loiro augusto.
        O cabelo crescia mais rapidamente, enquanto eu continuava a mandar minhas cartas à ela.
        Levei muito tempo para perceber, mas finalmente percebi, que agora era eu a dona formosa.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Numa cidade distante da França


            Fugir: Corria o mais rápido possível, sem tropeçar, sem parar. Pulava todos os troncos caídos, as pedras, engolia alguns mosquitos sem querer. Uma vez ou outra algum galho batia em seu rosto e formava um aranhão. Suplicava ofegante que a noite chegasse ou que deixasse de escutar aqueles passos apressados atrás de si. Não olhava para trás, mas escutava os pés ofegantes de Sarug e, por mais que ele corresse, o som não se afastava. Duvidava que Sarug fosse realmente humano, já  havia visto com três flechas atravessadas no coração – imaginou que morreria ali -, mas era esse mesmo homem que agora o perseguia. Efron fora acusado de conspiração, mas queria apenas salvar o pai e o reino, só queria salvá-los.
           
Enquanto dormia, Sarug entrou em seu quarto para matá-lo e – prestes a matá-lo – Efron acordou, viu a lâmina quase tocar-lhe a garganta, correu, correu, correu. Sarug correu também, atrás dele. Continuavam a correr até agora, exaustos (mas não desistiam, só corriam). Efron agora pensava em sua mulher, talvez estivesse sendo levada à forca neste momento. Nesse momento ele tropeçou, sentiu como se seu pé arrancasse, rolou, rolou, rolou. Caiu. Tentou levantar-se, seus braços doíam, não o agüentavam. Deitou, quase desmaiado. Os passos de Sarug se aproximavam, a cada passo, mais aterradores, mais fortes. Viu a imagem daquele cavaleiro sem cavalo crescer a sua frente, sentiu o terror amedrontador que o fazia tremer todo o corpo. Agachou-se ao seu lado.
Efron pôde olhar no fundo dos olhos de seu irmão. Uma lágrima correu pelo rosto de Sarug.
- Por favor, Sarug. Não faça isso, você não pode fazer isso. Eu não os traí, só queria salvar o papai. Você sabe, você sabe que os franceses querem sua cabeça mais que tudo. Se eu não tivesse feito aquilo, agora o castelo estaria em chamas e toda a nobreza sendo dizimada. Nossas cabeças seriam troféus.
- Eu sei, meu irmão – era evidente e sinistro o terror de Efron, seus olhos não mentiam. Sarug olhou para as mãos do irmão – Eu sei da verdade, irmão. O traidor dessa história é o papai. Ele sabia de tudo, sabia da própria morte. Ele quem nos traiu.
Sarug puxou-o e abraçou-o fortemente. Ambos estavam juntos, seus suores e suas lágrimas misturavam-se, formando uma redoma sobre eles, formando um cheiro erótico – como convite para que rolassem sobre aquelas folhas, nus, sem ninguém por perto, enquanto brincavam e provavam um ao outro, se entregando ao desejo. Permaneceram abraçados, unidos, de olhos fechados. Por um instante colaram as cabeças. As bocas ficaram tão próximas que sentiam o hálito do outro penetrar-lhes pela garganta. Tentavam falar, suas vozes misturavam-se, penetravam-se, até serem sufocadas no encontro dos lábios. Pararam, pausaram naquele movimento, formaram um retrato belíssimo sob as árvores, entre rochas verdes. Parados num beijo, as folha ainda roçavam-se sob seus pés. O fôlego começou a extinguir-se, passaram a respirar o ar do outro. Deitaram, rolaram, ainda de lábios entrelaçados. O suor fazia as folhas colarem-se neles, como se vestissem os corpos nus, quase apaixonados. Tentaram falar mais alguma coisa, mas não havia palavras – elas fugiram e os deixaram sozinhos. Repetiram novamente aquela fala sem palavras e juntaram-se, sentiram-se nas línguas. Já estavam quase sem roupas, um dentro do outro, quando Sarug puxou a espada e partiu o coração de Efron em dois pedaços murchos. Ele tossiu sangue, chorou sangue, sorriu quando Efron o beijou novamente e bebeu um pouco daquele sangue entre dentes. Engoliu o sangue e a saliva do irmão como se fosse vinho. Chorou silenciosamente abraçado ao corpo. Abriu a boca para falar algo ao silêncio – mas as palavras ainda não haviam voltado, talvez nunca mais voltassem. Deitou-se ao lado do corpo e fechou os olhos quando empunhou a arma contra o próprio coração já repartido. O sangue escorreu-lhe a emoção, pousou em seu olhar morto.

domingo, 1 de julho de 2012

Sonhos de nós

        Foi quando acordou que percebeu o sangue escorrer pelo seu braço, a sala estava escura, mas era possível enxergar o brilho sanguíneo.Buscou uma porta, uma saída, uma fuga, não encontrou. O sangue ainda pingava. Ofegava. Tentou lembrar-se de algo, não lembrou. A respiração acelerava. Agonia. Lembrou: "A falsa baiana quando entra no samba, ninguém se incomoda", a voz desafinada, o violão. Luzes acenderam-se, os olhos ardiam. "Biana é aquela que entra no  samba de qualquer maneira", abriu os olhos, a sala estava suja, velha. Havia uma porta, estava trancada - não havia números, palavras ou chaves, somente uma fechadura. Dor, dor de cabeça: fechou os olhos e desmaiou.
        Enquanto acordava, escutou:
        - Bom dia, flor-do-dia. Vamos fugir para outro lugar, baby.
        - Bom dia, ando tão confuso, ando tão à flor da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar.
        - O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.
        Beijaram-se, de lábios, de línguas, abraçaram-se.
        - Entre no meu carro, nós vamos rodar.
        - Seremos passageiros à noite.
        - Passearam, beijavam-se nos engarrafamentos, cantavam nos sinais. Mas continuava confuso com o sonho, continuava a perguntar-se, ainda tentava lembrar de algo.
        Continuou tentando lembrar até esquecer de lembrar e estar na cama. Eles brincaram, namoraram, transaram. Como dois animais sedentos de carne, suaram, comeram.
        Sonhou de novo.
        Viu corpos despedaçados, via braços de um casal norueguês, via-se em um espelho, sem braços, somente com um único olhos. Via seringas, sangue, gritos. Sentia o tempo passar, sentia um prazer tortuoso, não entendia, não se reconhecia.
        Quando acordou o sonho continuou.
        - Eu matei uma pessoa.
        Sorriso.
        - Eu renasci o amor.
        Aproximou-se para beijar.
        - Estou falando sério, a polícia deve chegar em dois minutos.
        - Então ainda temos tempo de sonhar mais e acordar depois.
        Um choro, soluços; um abraço: Dois  minutos: A polícia tocou a campainha. Continuaram abraçados. A porta caiu. A polícia entrou. Foram algemados, levados. Dessa vez não acordou