domingo, 3 de junho de 2012

Fragmentos do diário de um ex-ator

       Quando eu fico sozinho, sinto o cheiro de um perfume que não é meu, sinto um calor que não é o meu, como se sentisse outro alguém. E fica quase tudo estranho, quase nada faz sentido, quase. E é por isso que eu falo quando estou sozinho, porque sei que alguém me escuta, quase me sente. Há alguém ali ao meu lado, a me olhar, a me escutar e, talvez, a me amar. E essa é a melhor companhia de todas, esse quase outro eu, quase duplo de mim. Digo quase, pois não é meu reflexo que sinto, é outro. Outro por quem me apaixonei, conversei, amei, amo, falo, escuto. Outro, que alguns chamam de nada. Mas eu posso chamar de mim, de tudo.

      Um dia tive um sonho: Eu estava tomando banho e no momento de fechar o chuveiro, quanto mais eu girava a torneira, mais água saía, então eu girava e mais água. Já desesperado eu chutava a torneira, gritava, pedia socorro ao nada. A água já estava na altura de meu pescoço, o mundo todo estava encharcado, todos me culpavam, todos gritavam comigo. Foi quando eu desisti e parei, só então percebi que toda aquela água não era do chuveiro, mas minha - eram lágrimas.

      Eu sempre quis ser imortal, desde criança queria não morrer. E diziam que a esperança é a última que morre, por isso a matei. E então vi o quanto eu precisava dela para viver - e só se vive numa vida que acabará, mas agora a minha não acaba e já não vivo. Até queria ter esperança de um dia morrer, mas eu a matei.

      Não sei se foi meu olfato que mudou, minha visão que se distorceu ou meu paladar que desapareceu, mas agora é tudo tão virtual, meu tato é tão natural, sem falar da minha audição que, por escutar o tudo, não serve pra nada.

      E falo peremptoriamente por culpa do mundo, da sensação de ter emoção e escutar o coração, o pulmão. Ver o clarão da escuridão opaca, gigante, rimada. Mas meus óculos estão manchados de mundo - outro mundo de outra realidade -, que me faz não ver este mundo pertencente ao real.

     Sem movimento, sem fala, sem nada é que o teatro nasce, cresce e acontece. Nesses verbos que eu existo. E nas conjunções me diluo com as preposições, gritarias, risadas, violências, choros, caras, desanimadas, obrigadas a nascer, viver e morrer.

     Mas eu estou sem ideias, não tenho mais o que falar ou pensar, nem sei de nada, nem sei as funções dos pontos, não entendo as figuras de linguagem, não conheço preposições. A língua eu não conheço, mas eu a beijo, a uso, a estupro.

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